O que é o tal do Establishment?



Bernie Sanders, pré-candidato à presidência dos EUA, afirma: "Estamos falando de um movimento rápido nesse país em direção a um sistema político no qual um punhado de pessoas muito ricas e interesses específicos determinam quem é eleito e quem não é" ("We are talking about a rapid movement in this country toward a political system in which a handful of very wealthy people and special interests will determine who gets elected or who does not get elected"). Seu nêmesis, Donald Trump, pré-candidato republicano, diz algo parecido: "O establishment, a mídia, os interesses específicos, os lobistas, os doadores, eles estão todos contra mim" ("The establishment, the media, the special interests, the lobbyists, the doners, they are all against me"). De modo implícito ou direto, o debate sobre a influência que esse tal de establishment exerce na política americana é o centro dos debates das eleições ianques. Ninguém quer ser associado a ele. Jeb Bush, filho e irmão de ex-Presidentes, já até desistiu de concorrer. E o sucesso que estão tendo as campanhas de Sanders e Trump pode muito bem ser explicado por causa dessas postura.

O termo establishment se popularizou a partir do ano de 1961, quando o jornalista Richard Rovere publicou o texto The American Establishment. Apesar de ares de teoria da conspiração, o texto (leia aqui) traz definições interessantes: o establishment consiste numa aliança de indivíduos das finanças e dos negócios para influenciar diretamente o exercício de poder nos EUA em favor de seus interesses. As características peculiares que Rovere cita são o fato desse grupo possuir influência tanto nos Democratas quanto nos Republicanos, sua relação imbricada com universidades e seus institutos de pesquisa (como os ligados à família Rockefeller) e o controle que exercem sobre a mídia (especialmente, o New York Times).

Nos mesmos anos 1960, outra perspectiva sobre o debate começou a surgir. A partir do programa de desenvolvimento social do governo democrata de Lindon Johnson nos anos 1960, parecido com o Neal Deal, chamado Great Society, iniciou-se a crítica a uma “technical intelligentsia”, uma casta tecnocrática que exerceria o poder ocultamente. 

Na época da Great Society, estava disseminada a tese do fim da ideologia, de Daniel Bell, e várias abordagens tecnocráticas foram introduzidas, como, por exemplo, os cortes de taxas keynesianos, vistos como um progresso científico na gestão econômica, ou o programa de planejamento de sistemas orçamentários. Também nesse período surgiram espaços acadêmicos para estudo de gestão pública, assim como consultorias, ocorrendo a ligação entre universidades, agências do governo e think tanks de Washington.

Conforme a Wikipédia, Think Tanks "são organizações ou instituições que atuam no campo dos grupos de interesse, produzindo e difundindo conhecimento sobre assuntos estratégicos, com vistas a influenciar transformações sociais, políticas, econômicas ou científicas". Como explica Frank Fischer, em seu livro The Argumentative Turn in Policy Analysis and Planning, os republicanos reagiram e investiram na criação de think tanks próprios. As elites financeiras desenvolveram uma rede multimilionária de institutos de políticas públicas, expandindo dramaticamente os think tanks conservadores (American Enterprise Institute for Public Policy Research (AEI), the Heritage Foundation, the Center for Strategic and International Studies, the Cato Institute, etc).

Ocorreu, dessa forma, uma politização dos think tanks de elite, que se tornaram mais significantes para a deliberação de políticas e inclusive preencheram um vácuo deixado pelo declínio dos partidos políticos, tornando-se independentes de mudanças na opinião pública e deliberações abertas. Algo que é muito interessante para a atual conjuntura é destacado por Fischer. O fato de que tanto a esquerda quanto os neoconservadores criticam a influência dessa casta tecnocrata, o que explica o porquê de tanto Sanders quanto Trump serem anti-establishment, apesar de estarem em polos contrários no espectro político.

No entanto, falta a essas análises uma visão mais ampla, que consiga entender esse movimento de gestão no processo de desenvolvimento recente da economia política mundial. David Harvey, em seu livro "O Neoliberalismo: história e implicações", faz um histórico da criação dos think tanks. mas com outra perspectiva. Nos anos 1960 e 1970, um movimento de contestação surgiu com força nos EUA, principalmente com relação às lutas identitárias, como o feminismo e a luta antirracista, além do movimento pacifista contra a Guerra do Vietnã e críticas antissistêmicas. Como reação a esse contexto, os neoliberais armaram uma estratégia conjunta para conquistar as principais instituições (universidades, escolas, a mídia, os tribunais), com o objetivo de mudar o pensamento da sociedade sobre as corporações, a lei, a cultura e os indivíduos. A Heritage Foundation, o Hoover Institute, o Center for the Study of American Business, e o American Enterprise Institute, foram criados para apoiar as políticas neoliberais.

O mesmo aconteceu no Chile, com o famoso projeto dos chamados Chicago Boys. Como relata Naomi Klein no livro "A Doutrina de Choque", durante o governo de Salvador Allende, a Universidade de Chicago, cujo setor de economia era liderado pelo neoliberal Milton Friedman, acolheu alunos de economia da Universidade Católica do Chile para que estes se infiltrassem no alto escalão do governo, a fim de alterarem a política econômica de socialista para neoliberal. Somente após o golpe de Pinochet, que foi patrocinado pelos EUA, que esses acadêmicos chegaram ao governo e transformaram o Chile na primeira experiência neoliberal em um governo nacional.

A despolitização dos debates econômicos levou à emergência de uma tecnocracia, uma casta de técnicos que ignoram regras democráticas para passarem seus pensamentos econômicos, tidos como verdades matemáticas inquestionáveis. Esse processo foi gestionado e administrado por grandes companhias e pessoas, os membros do establishment. A política está de um lado e economia de outro. Tiraram do cidadão o direito de opinar e, pior, de decidir os rumos da política econômica.


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