Arquivo X e Wikileaks: a verdade está lá fora



A verdade está lá fora 

Em 1993, estreou nos EUA a série Arquivo X, The X-Files, de Chris Carter. Foi nada menos que a série de maior sucesso da história da televisão. Contou com mais de 12 milhões de espectadores. Teve nove temporadas e 202 episódios ao todo, terminando apenas em 2002, além de ensejar a produção de dois filmes e de uma série spin-off (The Lone Gunmen). O sucesso foi tanto que algumas das frases usadas nos episódios se tornaram icônicas da cultura pop nos anos 1990, como "a verdade está lá fora" (the truth is out there), "não confie em ninguém" (trust no one) ou "eu quero acreditar" (I want to believe).

A série foi inspirada em filmes de Hitchcok, The Twilight Zone e especialmente em uma série dos anos 1970 chamada Kolchak: The Night Stalker (veja aqui o filme). Arquivo X levou a ideia de Kolchak em outro nível de qualidade técnica e de criatividade. Promoveu a fusão entre o cinema noir policial e a ficção científica de horror. Essa mistura entre o mistério de crimes e o mistério de fenômenos sobrenaturais é a forma inovadora e muito atraente da série, que influenciou quase tudo de ficção científica que foi feito depois, porém, com o detalhe importante da qualidade cinematográfica: bons roteiros, boa fotografia, bons atores, boa música, enfim, é um produto caprichado.
O agente especial Fox Mulder (David Duchovny) do FBI viu quando criança sua irmã ser abduzida por extraterrestres. Quando ficou mais velho, formou-se em psicologia e entrou no FBI para buscar respostas e encontrar sua irmã. Porém, ridicularizado por suas ideias heterodoxas e crenças no sobrenatural, incorporou-se a investigar os Arquivo X, casos misteriosos sem solução. Para tentar descreditar seu trabalho, é enviada a cientista médica altamente especializada e inteligente, Dana Scully (Gillian Anderson). Um é o lado místico e intuitivo, a outra é o lado científico e racional. 
Apesar de todas essas características interessantes, o segredo do grande sucesso da série está na narrativa subjacente, ou melhor, nas narrativas, pois é feito um apanhado de importantes teorias da conspiração encadeadas como uma só, a cada momento mostrando facetas diferentes. Vamos tentar resumir essa história complexa (só revelada no final da série ao todo), que reúne nazismo, guerra-fria, projeto genoma e Área 51 [spoiler alert pra quem ainda não viu]: a partir dos anos 1940, governos de vários países se depararam com uma invasão de alienígenas, algumas naves e alguns seres foram descobertos. Descobriu-se que na verdade uma colonização estava começando, de modo que a solução foi fundar um sindicato de pessoas dispostas a encobrir esse fato da população, criar uma raça de híbridos humanos-alienígenas para não deixar nossa espécie morrer e com isso ir ganhando tempo para descobrir a cura perante o elemento principal de invasão, o chamado "óleo negro", um parasita extraterrestre que possui o corpo humano que penetra. Ao fim da segunda guerra mundial, o governo dos EUA deu anistia a cientistas nazistas e japoneses para que estes desenvolvessem essa tecnologia, fazendo testes em humanos, abduzidos para esse fim. Também se passou a catalogar informação biogenética de toda a população. Ao mesmo tempo, o governo usou essa biotecnologia para a criação de armas químicas e de um supersoldado, imune a doenças e invencível. Um bom resumo parcial pode ser visto aqui:
Toda essa trama complexa é quase caricata de tão fantástica, mas os produtores são muito competentes em criar um universo crível para essa narrativa, que aos poucos se revela e que não parece tão inacreditável assim no decorrer dos episódios. Mas o mais interessante é que essa história não foi criada do nada, apenas da imaginação de Chris Carter, mas foi sugada de teorias da conspiração que algumas pessoas e grupos realmente sustentam (até a aparência dos ETs é baseada em relatos de abduzidos - homenzinhos cinzas e não verdes). E mais, há sempre algo de verdade no fundo dessas narrativas.
No episódio da Segunda Temporada chamado Paperclip, é revelado que os EUA proveram segurança para ex-nazistas em troca de conhecimento cientifico. É citado Werner von Braum, que fez os foguetes V-2 e Saturno-V. Com esses cientistas, os EUA ganharam a corrida espacial. Até aqui, toda a história é verdadeira. De fato, a anistia dada a estes cientistas foi fundamental para o desenvolvimento de armas químicas e de tecnologia durante a guerra-fria. A Operação Paperclip existiu.
Até 2002, quando a série terminou, algo parecia tão fantástico quanto a existência de homenzinhos cinzas: os governos possuem informações sobre todos nós e nos vigiam o tempo todo. Pois bem, 14 anos depois, não há mais dúvidas: "eles" sabem de tudo.

Não confie em ninguém

Em 2006, o site wikileaks.org publicou pela primeira vez. Mas essa organização jornalística internacional sem fins lucrativos apenas ganhou projeção mundial em 2010, quando publicou um video da guerra do Iraque de 2007, no qual se mostrava o exército americano assassinando jornalistas da Reuters e civis e depois tentando encobrir o crime. A partir disso, o Wikileaks se tornou a principal fonte de publicações vazadas por whistleblowers (pessoas de dentro das organizações que passam secretamente informações sigilosas). O sucesso decorreu tanto da inovação em termos jornalísticos quanto da inovação tecnológica que garante que essas informações sejam passadas de modo secreto, sem exposição de quem as distribui.
Nas palavras de seu fundador e principal liderança, Julian Assange, “Uma guerra furiosa pelo futuro da sociedade está em andamento. Para a maioria, essa guerra é invisível (...) De um lado, uma rede de governos e corporações que espionam tudo o que fazemos. De outro, os cypherpunks, ativistas e geeks virtuosos que desenvolvem códigos e influenciam políticas públicas. Foi esse movimento que gerou o WikiLeaks”. (ASSANGE, Julian et al., Cypherpunks – Liberdade e o Futuro da Internet, São Paulo: Boitempo Editorial, 2013, p. 9).
Esse movimento dos Cypherpunks, citado por Assange, surgiu de um debate sobre democracia na internet. Surgiram questionamentos sobre o caminho que assumia essa tecnologia. A vigilância absoluta e o uso de virus de computador como armas, que pareciam assuntos de ficção científica, se tornaram da ordem do dia e passaram a representar um problema para a democracia e também tema geopolítico. E o pior é que a atuação do Estado ocorre à margem da legalidade. "O mundo não está deslizando, mas avançando a passos largos na direção de uma nova distopia transnacional. Esse fato não tem sido reconhecido de maneira adequada fora dos círculos de segurança nacional. Antes, tem sido encoberto pelo sigilo, pela complexidade e pela escala. A internet, nossa maior ferramenta de emancipação, está sendo transformada no mais perigoso facilitador do totalitarismo que já vimos. A internet é uma ameaça à civilização humana." (Idem, p. 21).
Apesar de parecer um discurso paranoico, o alarmismo desses militantes contra a vigilância é um elemento fundamental. "Quando nos comunicamos por internet ou telefonia celular, que agora está imbuída na internet, nossas comunicações são interceptadas por organizações militares de inteligência. É como ter um tanque de guerra dentro do quarto. (...) Com o aumento da sofisticação e a redução do custo da vigilância em massa nos últimos dez anos, chegamos a um estágio no qual a população humana dobra aproximadamente a cada 25 anos – mas a capacidade de vigilância dobra a cada 18 meses. A curva de crescimento da vigilância está dominando a curva de crescimento populacional. Não há como escapar diretamente disso" (Idem, p. 44)
A arma desses geeks é a criptografia. Criando seus próprios softwares e suas próprias equações matemáticas muito complexas, conseguem vencer a vigilância de grandes Estados e agências de segurança. Além disso, disseminam amplamente suas ferramentas, liberando e democratizando a criptografia. Sua militância é baseada no princípio da liberdade de comunicação e é com base nessa ética que o Wikileaks foi criado como canal de exposição das informações secretas que os governos e as empresas possuem do cidadão comum. Por isso a importância de expôr seus métodos e práticas ilegais e terroristas. Assange se denomina um "espião para o povo". A máxima cypherpunk é “privacidade para os fracos, transparência para os poderosos” e o princípio fundamental da filosofia hacker: “a informação quer ser livre”.
Existe muita confusão política quanto à essa militância, mas o movimento possui um viés anti-sistema claro, quando não anticapitalista. A importância fundamental geopolítica e econômica que a internet assumiu no século XXI leva diretamente a luta por democracia até esse patamar. "Assim, fundamentando a revolução das comunicações high-tech – e a liberdade que extraímos disso – está toda a economia de mercado moderna, globalizada, transnacional e neoliberal. Na verdade tudo culmina nesse ponto. Esse é o auge, em termos de realização tecnológica, do que a economia moderna globalizada e neoliberal é capaz de produzir. A internet é sustentada por interações comerciais extremamente complexas entre fabricantes de fibra óptica, fabricantes de semicondutores, companhias de mineração que extraem os materiais e todos os lubrificantes financeiros que possibilitam o comércio, tribunais para garantir a aplicação das leis relativas à propriedade privada e assim por diante. Então na verdade esse é o topo da pirâmide de todo o sistema neoliberal." (Idem, p. 39).
Por quase três anos, Julian Assange teve ordem de prisão decretada pela polícia britânica. Existe uma cruzada de deslegitimação e criminalização dele e dos demais membros do Wikileaks por parte dos principais Estados. Devido a proteção dada pelo Equador, Assange está em prisão domiciliar na embaixada desse país. Neste mês, dia 4 de fevereiro, a ONU declarou que considera arbitrária sua prisão e pede por sua liberdade, mas a decisão é ignorada pelo Reino Unido.
Julian Assange
Eu quero acreditar

Segundo o filósofo Slavoj Zizek, o Wikileaks já mudou o mundo: "Não ficamos apenas cientes de muita coisa das atividades ilegais dos EUA e de outras grandes potências. O WikiLeaks tem conseguido muito mais: milhões de pessoas comuns se tornaram conscientes da sociedade em que vivem. Algo que até agora nós tolerávamos silenciosamente tornou-se problemático". Algo que apenas era tratado como ficção científica, como teoria da conspiração, presente em episódios de Arquivo-X, de repente, tornou-se incontestavelmente real.
Chris Carter entendeu isso e, no meio desse contexto em que o telejornal local toma aspectos de série televisiva, conseguiu convencer os produtores da FOX em fazer uma nova temporada de Arquivo-X, agora, ambientada no atual contexto da vigilância. "Eles nos policiam, nos espionam, dizem que isso nos deixa mais seguros, mas nunca estivemos em maior perigo", diz Mulder no trailer da nova temporada, que estreou agora em 2016.
O curioso da nova temporada é que a realidade se adiantou à ficção. O desafio não vai ser apresentar uma história crível por trás de uma fantasiosa teoria da conspiração, mas ao contrário, mostrar uma história fantasiosa a partir de uma teoria da conspiração verdadeira.
O que a realidade dura do Wikileaks e a inventividade cinematográfica de Arquivo X têm em comum é trazerem um aspecto fundamental no debate sobre democracia para nossas sociedades. Elegemos nossos governantes, que, de acordo com as teorias do contrato social, deveriam apenas agir como nossos delegados no exercício de funções bem delimitadas pela legalidade, a partir de leis feitas por outros representantes do povo. Seus mandatos não são vitalícios para evitar arbitrariedades, motivo pelo qual também existe um controle do judiciário. Mas essa narrativa é talvez a mais fajuta das ficções. Ao invés de agirem apenas como representantes, nossos governantes realizam operações secretas para com isso lucrar particularmente, favorecer grupos econômicos e políticos específicos, controlar a opinião pública e a própria divulgação de informações, extrapolando em muito uma função meramente administrativa.
A fantasia de Arquivo-X e os documentos vazados pelo Wikileaks dizem uma mesma coisa: nossa democracia é uma farsa. Somos controlados por pessoas e estruturas ocultas, que buscam interesses contrários aos da maioria da população. A corrupção anda de mãos dadas com o autoritarismo. A revelação de esquemas sujos que envolvem a criação de guerras (como o divulgado pelo Wikileaks ano passado acerca da intervenção dos EUA na Síria, por exemplo) e a resposta duríssima contra Assange e seus companheiros demonstram isso.
Mas nesses momentos de crises agudas, surgem perguntas. E é dessas perguntas, algumas interessantes, que surgem possíveis respostas. É muito comentado como a Primavera Árabe aconteceu em decorrência da divulgação pelo Wikileaks de telegramas do governo americano. Assange, Snowden e Chelsie Manning viraram ícones de referência, que não podem mais ser silenciados. Assange participa de debates com Slavoj Zizek, Varoufakis, Chomsky, Tariq Ali, além de vários outros nomes importantes da esquerda mundial (veja The Julian Assange Show). Snowden, que conseguiu asilo na Rússia, foi até entrevistado pelo popular canal de John Oliver da HBO.
O mundo nos anos 1990 foi um mundo de transição. Mas talvez agora estamos caminhando para uma nova guerra-fria. Conflitos militares localizados jogam os EUA e a Europa contra a Rússia e a China. Disputas econômicas entre esses dois campos se tornam cada vez mais tensas e frequentes. Uma (insipiente ainda) corrida espacial volta a acontecer (China quer pousar na lua em 2017). A vertiginosa aceleração da vigilância e inteligência nos últimos anos, denunciada pelo Wikileaks, é mais um desses sinais. Os governos poderosos e multinacionais (que possuem profunda relação de imbricação) ainda têm muitos segredos a serem revelados e a luta para os conquistar é um novo front da guerrilha popular. A internet é um espaço de poder e de disputa.


Curiosidades

Se procurar no site do Wikileaks o termo "extraterrestrial", a segunda ocorrência é "Artifacts With Extraterrestrial Writings Discovered Near Tunguska Meteorite Site" (artefatos com escritos extraterrestres descobertos perto do local do meteoro de Tunguska). O curioso é que Tunguska é um local importante para os Arquivo X. É lá que Mulder é infectado pelo óleo negro após experimentos dos russos. Tudo decorre da queda de um meteoro (ou OVNI?) na região em 1905. Também há referências no site acerca de clonagem humana

Veja essa reportagem de John Oliver sobre a vigilância dos governos, com a (engraçada e irônica) entrevista a Snowden:

O Wikileaks vazou diversos documentos sobre o Brasil. Entre eles, existem relatórios dos EUA investigando profundamente o MST.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Análise acerca de O Crime das Irmãs Papin de Jacques Lacan.

Breves Considerações Críticas de Os Juristas como Couteiros: a ordem na Europa Ocidental dos Inícios da Idade Moderna – António Manuel Hespanha

O QUE É IDEOLOGIA E FETICHISMO NO DIREITO ou SABER OU FAZER? EIS A QUESTÃO