Curitiba: o jogo da política tem cheiro de cocô


"Curitiba fede a cocô". As palavras ásperas foram ditas pelo enfezado Rafa-Rafael Greca, pré-candidato à Prefeitura da cidade, em sabatina da Gazeta do Povo, feita pelos jornalistas Kátia Brembatti e Rogério Galindo. Enquanto Prefeito, nos anos 1990, foi responsável pelo Farol do Saber, cuja maior utilização atual é servir de pontos de referência nos bairros quando se procura um endereço, e enquanto ministro do turismo de FHC, foi responsável por fazer uma caravela que "comemoraria" os 500 anos do "descobrimento", mas esta nunca chegou a partir. Parece um truque da história, que sabia que não havia o que se comemorar perante o extermínio de milhões de indígenas. Mas o franciscano de frases eloquentes estava se referindo a esgotos e tubulações - não era uma metáfora, Curitiba fede a cocô. Mas talvez a frase lapidar de Greca possa ser interpretada de maneira mais simbólica, assim como o célebre "cocozão de Ponta Grossa", que simbolizava uma araucária e na verdade era um gigante excremento no palito, quando não incandescente. 
Agora, sem brincadeiras, uma notícia desses dias tira a máscara de modelo da cidade-sorriso e faz corar a Nossa Senhora da Luz dos Pinhais: Curitiba é uma das 50 cidades mais violentas do mundo. Os dados são da ONG mexicana “Conselho Cidadão pela Seguridade Social Pública e Justiça Penal” e têm por base informações oficiais das Secretarias de Estado. A média de 34,71 homicídios a cada 100 mil habitantes em 2015 garantiu a 44ª colocação. Quantas cidades será que existem no planeta? Só no Brasil tem 5.570, nos EUA, cerca de 30 mil, imagina no mundo todo. E Curitiba está em destaque, faz tempo que figura entre as mais desiguais do mundo, 17ª, segundo relatório da ONU de 2010.
Pelo menos a cidade e o Estado contam com uma polícia altamente especializada e preocupada com a segurança do cidadão, pronta para agir conforme a lei e levar os criminosos à justiça. Será? Não, esse foi um episódio da série americana Law and Order. Curitiba não combina com a ficção, estamos mais parecidos com o documentário sangue-frio do Netflix Making a Murderer. No dia 27 de janeiro, o Gaeco ofereceu denúncia contra o delegado Rubens Recalcatti e sua equipe pela execução de um homem. Os crimes foram homicídio triplamente qualificado (motivo torpe, crueldade e sem chance de defesa da vítima), abuso de autoridade e fraude processual. A vítima teria sido o suposto assassino do ex-Prefeito de Rio Branco do Sul, João Dirceu Nazzari. Inspirados por John Wayne, Tarantino e Legião Urbana, os policiais, conforme a denúncia, teriam assassinado por vingança. Justiça é assim na vila que "ouve o Papa Francisco": olho por olho, dente por dente. 
Greca saiu do ministério desmoralizado, mas não só pela nau furada. Que a política é um jogo, cheia de estratégias, competição e perigos, todo mundo sabe, mas, às vezes, é o jogo que se torna política. Em 1993, Grega caiu da pasta porque foi acusado de fazer portarias para favorecer a legalização do então proibido bingo eletrônico (embora os bingos não eletrônicos fossem então legais), devido a relações e lobby de produtores de máquinas caça-níqueis, ligadas à máfia italiana. Em 2012, o processo encerrou inocentando o ex-ministro.
O jogo da política anda de mãos dadas com a política do jogo. No dia 16 de janeiro, a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado aprovou projeto que prevê legalização dos bingos e casa de jogos. Motivo: dinheiro. Todas as esferas, municipal, estadual e federal, estão com grave crise de arrecadação e os impostos decorrentes de cassinos poderiam ajudar muito a levantar o orçamento deficitário. O projeto prevê que a cada 250 mil habitantes vai ser possível haver um cassino. Curitiba teria cerca de 7 ou 8. Os senadores chegaram antes que Pedro Lauro, que folcloricamente sempre concorre a vereador com o mote "cassinos no Brasil". Pedro deve ser o único político triste com a notícia, uma vez que segundo o relatório de Blairo Maggi (aquele), não há impedimentos para que políticos explorem casas de jogos.
Mas a nossa polícia sabe lidar bem com o problema da jogatina, a farda marrom-cocô é um símbolo da moral que prevalecia na época dos militares e foi perdida por essa geração sem educação. E o que não dizer do nosso Judiciário, que é tão humilde que depende de bolsa do governo pra ter onde morar. Ah, não, esse foi um episódio daquela série Força-Tarefa da Rede Globo. Como lembra a reportagem de Felippe Anibal à Gazeta do Povo, em 2006, o desembargador Ricardo Regueira, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, foi preso acusado de vender decisões que permitiam o funcionamento de bingos na cidade. Em 2012, a mansão-cassino foi estourada e as investigações indicaram que era frequentada e controlada por policiais. Em 2011, o coronel Marcos Theodoro Scheremeta, exonerado, que estava no Comando da PM de Richa, admitiu ter relações com gerentes do jogo do bicho e com chefes dos caça-níqueis.
Olhando pra tudo isso, não resta outra alternativa a não ser concordar com Rafael Greca. "Curitiba fede à cocô". Só que essa fossa que origina o mau cheiro, ela é bem funda. Devemos ter muito cuidado, tanto nas urnas eletrônicas, quanto nas viaturas policiais ou nos botões das máquinas de jogos. Primeiro, cuidado para não nos sujarmos. Depois, cuidado para não nos limitarmos a apenas lavar as mãos. Tapar o nariz não faz a sujeira desparecer.

Edvard Munch (1892)

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