Curitiba merchandizing: os postes, Recalcatti e a violência

Dos postes-araucárias às luminárias republicanas
No mês de outubro, Curitiba foi eleita a melhor cidade do país para se viver. A pesquisa promovida pela Agência Classificadora Austin Ratings e pela Revista IstoÉ,  "avaliou 212 indicadores relacionados às áreas social, econômica, fiscal e digital, com foco na igualdade das oportunidades entre os habitantes das cidades.". Curitiba sempre figura nesses rankings e tem destaque nas disputas internacionais. No dia 19, inclusive, ficou em segundo lugar na disputa pela capital mundial do design, perdendo para a Cidade do México.
Mas será que isso é verdade? Por que Curitiba consegue sempre participar dessas competições e, às vezes, ganhar? A pergunta formulada no refrão da música Cidade Holograma, do grupo de rap curitibano dos anos 1990 Comunidade Racional, confrontava essa ideia: "Cidade propaganda, cidade sorriso, Curitiba, ha ha, onde está o paraíso?".
Críticas à ideia de que Curitiba é uma cidade sem problemas só começam a se popularizar nos anos 1990 e muito disso tem a ver com o fim da ditadura e a redemocratização do país. Durante o regime militar, a cidade se tornou símbolo do sucesso desse governo, por isso, uma cidade propaganda, um modelo a ser seguido. Seu prefeito-biônico, empossado à força pelos militares, Jaime Lerner, implantou um plano de urbanização vendido como racional e eficiente. A partir dessa realidade, criou-se o que o professor da UFPR Dennison de Oliveira chama de "O Mito da Cidade Modelo". Curitiba virou um a cidade mitológica, fundada em alicerces de fumaça: a cidade europeia, sem negros nem pobres, a cidade sorriso, a cidade ecológica, a capital social (talvez o mais adequado seria chamá-la de cidade-slogan).
Na década de 1970, os símbolos da burguesia local, oriunda do passado, das sesmarias ao cultivo do mate, foram valorizados pela elite. Como nessa época o acesso ao poder público era muito centralizado, não existia muito espaço para outra ética nem outra estética. As luminárias da rua XV de Novembro e das praças do centro da cidade tinham o formato de araucárias. Após a redemocratização, esses mitos começam a ser mais criticados por parte da sociedade e mais percebidos pela população, embora ainda prevaleçam hegemônicos na mídia e no poder público. Boa parte dos habitantes vieram de outros lugares e não se identificam com essa história. No caso das luminárias, os postes paranistas, também usados na ditadura, foram trocados por luminárias chamadas "republicanas".
A cidade provinciana, vendida como modelo de desenvolvimento humano, se transforma, nos anos 1980 e 1990, em cidade republicana, grande centro urbano. A população de Curitiba se multiplica rapidamente. Segundo o IBGE, em 1970, Curitiba tinha 609 mil habitantes e em 2010 ultrapassou 1,7 milhão de pessoas, conforme dados da Agência Curitiba. Na década de 1970, os bairros mais populosos eram ligados ao centro, postos que, em 1990, passaram a ser ocupados pelos bairros da zona sul, conforme estudo do IPPUC. Esse boom ocorreu devido ao fim do ciclo do café no oeste e norte do Paraná, ocasionando forte êxodo rural, além do projeto de industrialização da região de Curitiba, que promoveu grandes incentivos para a vinda de indústrias e precisava de força de trabalho barata para servir a esse setor. No mesmo processo, o marketing do planejamento urbando de Curitiba transformou a cidade em espetáculo, para fortalecer o crescimento urbano, como explica Rosa Moura.
A imigração e ocupação desses territórios formou um imenso cinturão periférico na cidade. Essa ocupação ocorreu às margens da lei, mesmo quando foi incentivada pelo poder público. A Companhia de Habitação municipal, Cohab, foi condenada em última instância pelo STJ, em 2010,. por fraudes, conforme a notícia da ONG Terra de Direitos: "o Superior Tribunal de Justiça, (...) considerou nulos os 31,5 mil contratos firmados na década de 90 pela Cohab para a regularização de imóveis de 12 vilas da cidade. A anulação ocorreu pelo fato da Companhia ter feito contrato sem que a prefeitura aprovasse projetos de loteamento, sem que houvesse registro dos imóveis no cartório, e ainda por não serem os terrenos vendidos de propriedade da Companhia, algo que vai contra a lei.".
Essa ocupação súbita, desordenada e desenfreada, foi apoiada clandestinamente pelo poder público, que queria o aumento populacional, mas se negava a fornecer serviços de qualidade aos egressos. Em outras palavras, desejava atrair a força de trabalho barata sem abrir mão dos privilégios dos bairros tradicionais e ricos. A população periférica da cidade passou a entrar em franca disputa com o centro urbano, considerado modelo, para conseguir serviços básicos, como asfalto, saneamento, ligação de água e luz, transporte público, correio. Muitas áreas ainda não conseguiram a regularização fundiária. Muitas possuem problemas legais, como os moradores atingidos pela fraude da própria Cohab.
A alteração de Curitiba de provinciana para metrópole trouxe consigo todos os problemas da cidade grande. Dos sambas de Maé da Cuíca, que retratavam as diferenças entre as elites tradicionais e a cultura dos ferroviários, passando pelo sertanejo desterrado de João Lopes (cuja música  reclama que a "vida na cidade grande tá difícil pra danar"), nos anos 1990, a periferia da cidade passa a cantar os raps da Comunidade Racional (e hoje os funks de Mc Mayara). Curitiba é hoje mais "CIC - Cidade Industrial, a cidade, o medo e o mal".


A cidade, o medo e o mal
Nesses raps, sobressai o problema da violência. Uma explosão demográfica desordenada, sem acompanhamento nem apoio do poder público tem suas consequências. A pequena delinquência e gatunagem dos anos 1970 parecem brincadeira perto da disputa sanguinária nada romântica por que passam as periferias hoje em dia. Evidência disso está no recém-publicado Mapa da Violência de 2015, que traz dados chocantes. Uma das informações que mais causam perplexidade é esta: Assassinato será causa de mais da metade das mortes de jovens em 2015. Mas há ainda mais notícias. Mortes violentas aumentam em 18 estados brasileiros, "Em 2014, 58.559 pessoas foram assassinadas no Brasil — é como se um brasileiro fosse morto a cada dez minutos", como informa a reportagem da Agência Globo.
Curitiba, infelizmente, não foge da tendência nacional, ao contrário, tem posição destacada. Foi a capital do sul com mais mortes violentas, com uma ocorrência a cada 13 horas. Ainda com queda em relação ao número de 2014, em 2015 ocorrem quase sete homicídios por dia na "cidade sorriso", que ocupa a faixa intermediária quanto à taxa de óbito por armas de fogo nas capitais do Brasil e possui crescimento desse tipo de morte em 32,2% de 2014 para 2015, acima da média nacional, que é de 0,5%. Nesse sentido, Curitiba não parece ser modelo nem para o Brasil e muito menos para outros países.,
Esse alto índice de mortalidade decorre muito da criminalidade, principalmente, no que diz respeito à disputa relacionada à ilegalidade das drogas. O mercado ilegal de drogas é um catalisador da violência, pois se trata de um negócio não regulamentado pelo direito e pelo Estado. As mortes ocorrem por três frentes: na competição territorial capitalista entre os vendedores, no conflito entre consumidores e vendedores e na guerra contra as forças públicas de repressão. Vários países estão chegando à conclusão de que a única maneira de acabar com essa violência é mudar a política sobre drogas, legalizando e regulamentando sua produção, distribuição e consumo. As experiências recentes no Uruguai e EUA mostram como esta nova prática apresenta resultados muito interessantes.
Em Curitiba, no entanto, a questão é tratada como assunto de polícia e o poder público fomenta a violência, ao invés de diminuí-la. A propaganda, no entanto, mostra uma cidade diferente. Aconteceu em Pontal do Paraná, entre os dias 6 e 8 de outubro, o Primeiro Congresso de Políticas sobre Drogas do Paraná, que decidiu por priorizar a prevenção. O que se considera como prevenção, neste caso, é investir dinheiro em comunidades terapêuticas, entidades religiosas e privadas que mais parecem, pequenos manicômios. Em 2011, o Conselho Federal de Psicologia realizou inspeção em 68 comunidades terapêuticas e descobriu violações de direitos humanos em todas elas. Ao invés de estruturar a Rede de Atenção Psicossocial, dá-se dinheiro para esse tratamento privado e religioso como se fosse política pública. E não se tira recursos dos aparatos de repressão, como a Guarda Municipal, que possui até grupo de operações especiais.
Pois bem, o DCE da UNESPAR iria realizar no dia 7, em Paranaguá, evento para debater a questão das drogas, aproveitando a realização deste Primeiro Congresso sobre Drogas do Paraná. Porém, o evento foi cancelado unilateralmente pela Secretaria de Educação, como afirma a nota dos estudantes, sob a justificativa de que seria "inapropriado" debater as drogas como um problema de segurança pública.
Mas o medo e o mal também se perpetuam devido ao modo como a cidade e o Estado lidam com a violência na fase da sua punição. O Paraná se destacou no cenário nacional ano passado pela quantidade de rebeliões em seus presídios. Foram 22. No dia 16, foi publicada a pesquisa "Diagnóstico dos Homicídios do Brasil", realizada pelo Ministério da Justiça, que coloca o Paraná em alerta vermelho. A situação do estado é considerada "ruim" quanto a conflitos entre a população e a polícia, assassinatos envolvendo o tráfico e estrutura deficiente de acesso da população a políticas públicas. E não à toa, Curitiba "ostenta" o pior cárcere do país, o 11º DP, localizada na Cidade Industrial. A masmorra foi eleita como a pior do Brasil pela comissão nacional da OAB, e, depois, temporariamente fechada. Mais um ranking nacional em que Curitiba é modelo.

Covardia tem nome e sobrenome
No dia 5 deste mês, pesquisa realizada pelo Datafolha trouxe um dado alarmante: mais da metade dos brasileiros apoia a ideia de que "bandido bom é bandido morto". O contexto é extremamente recrudescedor. O Congresso debate, com amplo apoio popular, a redução da maioridade penal para 16 anos. Figuras caricatas do moralismo cristão, urubus que vivem fazendo propaganda e sensacionalismo em cima do sangue dos outros, agora se aventuram na política. O apresentador de TV Datena vai ser candidato à prefeitura de São Paulo. O mais curioso é que vai disputar o pleito pelo PP, partido de Maluf, que possui de longe o maior número dos indiciados na Operação Lava Jato.
Curitiba, novamente, não fica longe do cenário nacional. Após a barbárie do dia 29 de abril, conhecida internacionalmente como "massacre aos professores", o principal chefe dessa operação, ao lado do governador Beto Richa, Fernando Francischinni (saiba mais sobre o rambo curitibano aqui), anunciou sua pré-candidatura à prefeitura da cidade.
Outro "homem da lei", o delegado Rubens Recalcatti, suplente no cargo de Deputado Estadual pelo PSD, foi preso na última terça-feira (13) pelo GAECO, acusado de coordenar e participar da execução de Ricardo Geffer, parente do próprio Recalcatti. Além das testemunhas que presenciaram a execução, as provas periciais também aumentam a suspeita sobre o delegado.
Recalcatti é mais uma dessas figuras públicas construídas sob a defesa da lei e da ordem, mas que são os primeiros a agirem de modo ilegal. Assim como Francischinni, seu nome não é isento de denúncias de corrupção. Mas diferente dos milhares de jovens mortos pela polícia no Brasil, esses representantes da bancada da bala são inocentes até que se prove o contrário.
Na nossa conjuntura em que a violência policial é louvada, a morte de jovens é vista com indiferença e a população deseja que criminosos morram, não impressiona o protesto de familiares e amigos do delegado contra sua prisão. Curioso, "bandido bom é bandido morto", mas quando esse "bandido" é um "herói" de bang bang, todos são inocentes até que se prove o contrário, afinal, "matar bandido" não é crime pra essa gente.
Cada dia mais, a cidade se torna mais hostil e mais desigual. Curitiba foi classificada como a 17ª cidade mais desigual do mundo, segundo o Relatório das Cidades, apresentado pela ONU em 2010. E também, a 6ª mais desigual da América Latina, em relatório da ONU de 2012. Quanto mais longe da propaganda Curitiba fica, mais se torna importante o marketing urbano e mais contradições aparecem.
A mudança no estilo dos postes da cidade simboliza a mudança de uma Curitiba provinciana para uma Curitiba metrópole. Mas a cidade modelo está longe de ser como na propaganda, está longe de ser republicana. O próprio merchandising entra em contradição com os habitantes. Sexta-feira, dia 9, um poste republicano caiu na cabeça de uma mulher, que se encontra em estado grave de saúde. No dia 19, Recalcatti consegue uma liminar e deixa a prisão.


Poste Tradicional



Poste Republicano

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