Rua São Francisco e a falsa polêmica: que tipo de vida o centro tem?

Foto de Dayana Luiza

Hoje, 28 de setembro, o jornal Gazeta do Povo publicou a seguinte reportagem sobre a Rua São Francisco: A rua com vocação para a boemia e para a polêmica, de Felippe Aníbal e Marcelo Andrade. O tema é recorrente no jornal e o debate é escancarado para os frequentadores. Embaixo, no chão noturno dessa rua histórica, jovens, universitários e periféricos, maconha, tabaco, álcool, música, conversa, namoradas, namorados. Em cima, pendurada entre prédios da viela, uma faixa assinada pelos moradores e comerciantes agradecendo as ações da Guarda Municipal e da PM. E essas ações consistem em abordagens violentas, com a presença de cães farejadores e armas apontadas.
Existe uma disputa em torno da São Francisco, seu significado e sua utilização. Essa disputa possui diversas contradições e tem relação direta com a vocação histórica e social da Rua e com seu projeto de revitalização, a política de urbanismo projetada recentemente para ela. A partir de 2009, a Prefeitura de Curitiba junto com o IPPUC e a Associação Comercial do Paraná começaram o projeto Centro Vivo, de revitalização da região central da cidade (entenda aqui esse projeto). Nesse sentido que se seguiu a reforma da São Francisco. Sua calçada foi ampliada, diminuindo o espaço dos carros. Incentivou-se a reforma das fachadas de seus prédios. Novos comércios foram abertos, principalmente restaurantes de qualidade gastronômica e caros. A iluminação foi incrementada. O policiamento, de fato, reforçado, sendo raros os dias em que não se vê qualquer tipo de abordagem policial nos arredores.
A ideia de todas essas medidas foi criar um centro cultural, gastronômico e comercial voltado para classe média universitária, especialmente ao setor hipster, ou cult. Daí a valorização dessa cultura, bares caros e pops, shows de músicas, lojas de móveis retrô, brechós chics. Por isso a palavra higienização, tão utilizada. Tirar a pobreza da área fazendo uma "limpeza" econômica, cultural e étnica - menos pobres, mais ricos; menos velhos, mais jovens; menos negros, mais brancos.
Dentro desse contexto, aproveitando-se dessa nova onda de ocupação da rua, foi criada a Praça de Bolso do Ciclista. Iniciativa contraditória dentro desse processo. Por um lado, a praça foi construída pelas mãos dos envolvidos na militância do uso da bicicleta, o que obviamente tem um caráter progressista e de ocupação dos espaços da cidade feito diretamente por seus habitantes, além da criação de um espaço público de convivência. Por outro, no entanto, reforça as iniciativas elitistas e higienistas do Centro Vivo e do Corredor Cultural, pois faz coro a essa mesma noção cultural e comercial da área. 
Essa contradição simbolizada pela Praça é a contradição de todo esse projeto de revitalização. A São Francisco tomada pela miséria e pelo uso abusivo de crack é um problema real e que deve ser solucionado. Mas a resposta vendida (vender é o verbo mais adequado) é uma falsa solução - trata-se de varrer os problemas para onde não podemos ver e criar mercado onde não havia. As cidades são vistas pelo capital como espaços de acumulação e é sob essa lógica, a do mercado, a do comércio, a do dinheiro, que ocorre o zoneamento urbano. Dar vida, pros gestores, é transformar uma rua numa mercadoria. Revitalizar é privatizar.
No entanto, a vocação do centro em ser um espaço democrático e amplo e um espaço de resistência ao esquecimento histórico permanece. Foi ali por perto a Guerra do Pente, foi ali por perto que a população negra sofreu no pelourinho, para depois destruí-lo. A disputa sobre o que é a cidade tem como palco historicamente o seu centro.
Curioso. Os comerciantes revitalizaram a região para criar essa noção de shopping a céu aberto e centro cultural à lá R. Augusta, mas foram traídos pela falta de liberalismo econômico em suas análises, não conseguiram se antecipar e entender seu próprio "público alvo". Junto com os bares caros, vieram bares baratos. A repressão policial que fechou alguns botecos do centro, frequentados pela juventude, criou uma reserva de mercado, uma demanda não atendida. Naturalmente, o povo "sem-bar" migrou para duas regiões da cidade: a Rua São Francisco e sua distribuidora de bebidas e o Bar do Bigode (antigo Bec Bar). Onde mais se pode comprar uma cerveja de 600ml por menos de R$ 5 no centro da cidade?
Ambos os lugares se tornaram salseiros de gente e formaram um fenômeno muito interessante de miscigenação cultural e étnica. A juventude universitária, majoritariamente branca, passou a compartilhar seu espaço com a juventude periférica, majoritariamente negra. E essa integração foi reforçada pela presença de espontâneas manifestações artísticas. Um prédio abandonado, sem qualquer uso, foi ocupado para se tornar um centro cultural. A São Francisco, nosso tema, foi bloqueada pelas presença da massa. As pessoas estavam valendo mais que os carros.
Junto com a presença dessa gente, veio a presença de suas manifestações culturais: a céu aberto, não havia impedimento para consumir tabaco. O álcool barato incentivava o consumo de tubão. Histórico costume, de ambos os setores, o Fumo d'Angola, proibido no século XIX no Brasil por ser prática de escravos, chamada hoje de maconha, é consumido livremente.
A mensagem dessa juventude aos comerciantes foi de enfrentamento: não importa o quanto se investe para tornar o espaço público um espaço segregado e privatizado, a cidade é de quem a ocupa. É claro que essa ocupação não é idílica, não vem sem suas próprias contradições. Ocorreram brigas. O barulho atrapalha os habitantes da região. Ocorre tráfico, pois esse sim é um negócio bem liberal - o mais liberal de todos, devido ao seu não reconhecimento e não regulamentação pelo Estado. Mas o fato é que a presença da periferia no espaço comercial incomoda, seja nos shoppings fechados (lembram-se dos rolezinhos?), seja nos shoppings a céu aberto.
A resposta foi repressão policial. A Rua São Francisco se tornou palco de mais um conflito. As abordagens policiais tem claro objetivo de dispersar, de desincentivar o uso da rua. Na reportagem que foi publicada hoje, comerciantes e policiais dizem que "a ocupação espontânea da rua fugiu ao controle".
Primeiro erro, a ocupação não foi espontânea. Toda a reforma da Rua foi para incentivar sua ocupação! E agora que as pessoas comparecem, são criminalizadas. Seria esquizofrênico, se não tivesse um objetivo claro: o que foi espontâneo foi a ocupação pela periferia e é isso que fugiu do controle. A polícia varre a Rua e o comércio fecha mais cedo para expulsar essas pessoas do local. Fica muito evidente pela boa reportagem o motivo disso: "o movimento já não depende dos bares, uma vez que os novos frequentadores levam sua própria bebida – o famoso “tubão” – e permanecem na rua, conversando, jogando baralho ou tocando música.". Ora, não se trata de consumidores, eles não dependem dos bares, não compram nada. E como aceitar que pessoas se divirtam na rua se não compram nada? Pau neles!
Mas a justificativa explícita é sempre o uso de drogas. De praxe, o motivo utilizado para reprimir os pobres e os negros em nosso país são as drogas. "O que mais lhes incomoda é a banalização do uso da maconha. 'Eles [os frequentadores] agem como se as drogas estivessem liberadas na rua', resume Sílvia Aparecida Rodrigues, diretora do Colégio Estadual Poty Lazzarotto, para jovens e adultos. 'Quando descobriram que aqui podiam fumar maconha livremente, começaram a vir pra cá e houve essa explosão', diz a empresária Fábia Biasi.". 
O modelo de como esses gestores queriam que fosse a Rua São Francisco é, na verdade, a Rua Vicente Machado, no bairro mais nobre da cidade, o Batel. Jovens universitários, hipsters, da cultura pop, bacanas, playbas, brancos frequentam na calçada os bares da região, especialmente o Pizza e o Durvas. Consomem álcool e, principalmente, a maconha, ali em seu aspecto mais cannabis do que d'Angola. É raríssimo ver alguma pessoa negra naquela rua, mas é tão comum quanto na São Francisco ver consumo de maconha. A polícia ronda a região, mas nunca faz batidas. Engraçado, a droga não parece ser um problema no Batel. E a cocaína, substância elitizada consumida por ricos abertamente nas baladas deste bairro, nunca é apreendida.
Os comerciantes associam o uso da maconha com a violência. Falso pressuposto, novamente. A maconha é uma droga relaxante que não incentiva rompantes violentos. É uma droga pouco viciante (menos que o álcool e nicotina), de modo que o usuário não precisa recorrer ao crime para ter dinheiro para comprá-la. Se existe alguma violência decorrente dessa situação é a violência da polícia contra o usuário e contra os muitos (a maioria) de não usuários que são submetidos à traumática experiência de serem tratados como inimigos da sociedade, só porque sua diversão é de graça, porque não pagam para estarem na rua. 
Os fatos, novamente, são teimosos em demonstrar como as drogas não são o problema real que enseja a atuação da polícia. Na maior dessas abordagens, que ocorreu em 06/09/2015, a PM enquadrou centenas, mas deteve apenas três pessoas, sem ter havido nenhum registro de confusão, antes ou depois. Veja isso nos jornais. O contribuinte deveria reclamar da utilização improdutiva da polícia, que deveria fazer algo mais importante (como retirar gatos presos em árvores).
A história da Rua São Francisco só nos mostra como a história do conflito urbano não passa de mais uma faceta de uma guerra antiga: uma guerra de classes e uma guerra de raças. Já disse um poeta que "a praça é do povo como o céu é do condor". São Francisco, quando apenas se divertir é um ato de resistência.

Comentários

  1. Faço apenas uma observação: no texto, consta que, na abordagem (?) policial de 06/09/2015, foram "presas" três pessoas. Os jornais, na verdade, relatam três "detenções", o que não necessariamente significa "prisão". Como eu estive "presente" nessa abordagem (e, talvez por ser branco, talvez por ter mais de 35 anos, talvez por estar em um dos bares "menos baratos"), afirmo não apenas que fui tratado de maneira no mínimo "diferente" (e "melhor") do que a "piazada do tubão", mas também relato que não vi qualquer pessoa ser detida ou presa. Este é um detalhe que merece mais investigação (saber se, de fato, a "megaoperação" se revelou um retumbante fracasso, com "zero" pessoas presas/detidas, ou se, de fato, houve três detenções; deve haver algum "registro oficial" que comprove isso).

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  2. Boa Yuri, grande análise, nada a retirar ou acrescentar.

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  3. Análise realista de um problema escondido nas sombras da sociedade. Que a juventude possa criar um mundo novo perante alguns valores antigos que já não funcionam mais pra sociedade atual.

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  4. tomar MD e encher o cu de cachaça na balada pode, e pegar o carro depois, também. sentar numa rua e tomar cachaça e fumar um baseado, e depois ir de ônibus pra casa é crime.
    acordem, o café do Brooklyn e o rango do Pizza da SF não são menos `saborosos` que os da Vicente. apenas a clientela é menos `digerível`.

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    1. Nenhum nem outro, jovem.

      Não se pode dirigir alcoolizado, tampouco sob efeito de algum outro entorpecente, pegar busão pode de qualquer jeito. Detalhe, nunca vi maconhômetro em blitz...

      Essa afirmação de segregação de classe é patética, mesmo se a droga ou o álcool do rico e do pobre fossem diferentes, a atitude irresponsável do usuário é a mesma, logo, ambos sem valor.

      O largo da ordem sempre foi o paraíso dos malucos desocupados de Curitiba e RMC, independentemente se o doidão é "dazilite" ou favelado.

      Palavra de quem já tomou muita geral no mesmo local.

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  5. Parei no "econômica, cultural e étnica - menos pobres, mais ricos; menos velhos, mais jovens; menos negros, mais brancos."

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    1. O que aconteceu? Desenvolva o argumento, talvez seja uma contribuição.

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    2. Economica e cultural, beleza, concordo plenamente. Discordo do "etnica" por que esse com certeza não foi um objetivo da reforma. Para dar valor a algum lugar é necessario fazer reformas, subir o padrão, limpar as ruas, procurar negócios e fazer parcerias. Esse foi o objetivo do projeto e foi executado com exelência, isso não há duvida. Entretanto, conforme o padrão for subindo, classes baixas vão se afastando. Infelizmente a maior parte dos negros é pobre, suponho eu, ja que utilizo apenas dos meus conhecimentos, ainda que precários em alguns pontos. Mas a questão é que a parte do "menos negros, mais brancos" vai ocorrer não por que o projeto visa essa mudança, mas sim por causa de uma fragilidade socio-economica histórica por parte dos negros. Portanto, achei injusto apontar que o projeto tem como uma das bases fazer uma limpeza étnica na São Francisco.

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    3. fragilidade ??que porra é essa???O nome disso é injustiça social Carajo!!Não se dá com nós negros apenas, mas em grande parcela da população..O velho karl Marx ja dizia; O capitalismo não resolve as contradições da sociedade..Fechem a S Francisco, fechem o poty; viva a putaria, a maconha, a cachacha; isso é pindorama..Bora divertir; quem puder pagar,né??

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  6. Bela reflexão, reuniu boa parte do que eu penso sobre essa gentrifição mal-sucedida da São Francisco. Uma pena que a cidade não esteja sabendo aproveitar um dos únicos espaços no qual se ensaiou uma convivência amistosa entre todo o tipo de gente.

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