Bolsonaro e Comissão da Verdade - Tortura, ontem e hoje: EUA e Brasil apresentam relatórios sobre ofensas à direitos humanos

A prática de tortura parece, a primeira vista, ser tema de estudos sobre a Idade Média e os suplícios da inquisição. No entanto, não existe tema mais atual. Dois relatórios apresentados essa semana recolocam o assunto em debate: o relatório apresentado no dia 9/12 pela Comissão da Verdade, sobre os crimes contra a humanidade cometidos durante a Ditadura Militar brasileira, e o relatório do Senado dos EUA sobre as práticas interrogatórias da CIA, apresentado no dia 8/12.
É quase coincidência o lançamento desses relatórios na mesma semana. A relação entre Brasil e Estados Unidos, Ditadura Militar e CIA, é direta no que diz respeito à tortura. Em seu livro “A Doutrina do Choque”, a jornalista canadense, Naomi Klein, traz documentos e informações reconhecidas pelo governo americano de que a CIA desenvolveu a partir dos anos 1950 um manual de tortura chamado Kubark, que apresenta técnicas de interrogatório baseadas no choque elétrico, privação de sentidos, terror pscicológico e violência física. Esse manual foi utilizado pela Agência durante toda a guerra fria e foi exportado para países em que os EUA patrocinaram governos (democráticos e ditatoriais).
No livro “Brasil Nunca Mais”, organizado pela CNBB - Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, marco documental da luta contra a ditadura no Brasil, são relatados documentos oficiais que demonstram a ocorrência de “aulas de tortura” ministradas por membros do exército norte-americano aos oficiais brasileiros. Ocorriam demonstrações práticas, com cobaias (geralmente indigentes capturados para esse fim). O mesmo livro retrata, a partir de depoimentos em processos judiciais, quais eram as práticas de interrogatório: choque elétrico, espancamento, afogamento e até a utilização de animais. Como afirma Naomi Klein, esses métodos foram desenvolvidos para incutirem a dor certa, na medida certa, cientificamente desenvolvida, a fim de quebrar física e psicológicamente o “inimigo”.
Em vários outros países da América Latina ocorreram práticas similares, impulsionadas pela relação de apoio e sustentação dos EUA às ditaduras do continente - a conhecida Operação Condor. Mas Argentina, Chile e Uruguai, por exemplo, após a redemocratização de seus países, adoratam políticas profundas de memória. Abriam seus porões, expuseram todos os crimes contra a humanidade cometidos, todas as violações de direitos humanos, os apoios da sociedade civil, das empresas, dos indivíduos. Com isso, repactuaram-se para uma sociedade mais democrática, puniram os assassinos e reformularam a estrutura de suas instituições. Hoje, garantem a educação e a permanente lembrança desses tempos, para impedir seu retorno, mas nunca esquecendo do que ocorreu.
O Brasil, contudo, nunca passou por um rompimento radical com seu passado autoritário e violento. Em vários sentidos. A redemocratização foi lenta e gradual, controlada pelo próprio governo militar, que perdeu alguns aneis para não perder os dedos. Carcaças das estruturas dessa época permanecem e são hoje pontos de tensão instransponíveis no país, como a militarização das polícias, por exemplo. A anistia, que libertou os presos políticos, ao mesmo tempo, perdoou todos os crimes do Estado e de seus agentes. Governantes, autoridades de política econômica e administradores da repressão mais bruta e direta não apenas continuam normalmente com suas vidas, como têm seu passado completamente esquecido. Políticos como José Sarney e Jaime Lerner são hoje louvados. Economistas como Delfim Neto são referência em sua área. Colaboracionistas como o músico Roberto Carlos, como a Rede Globo de Comunicação, são populares e admirados. Empresas que tinham porões da Doi-Codi em suas fábricas, como a Ford, e que financiavam grupos de extermínio, como a Volvo que auxiliava a Operação Bandeirantes, são incentivados por isenções de impostos. Jornalistas como Bóris Casoy, que era membro do Comando de Caça aos Comunistas, é âncora de jornal televisivo.
Tudo mudou desde 1984 para que nada mudasse de fato.
É fundamental lembrar que a tortura cometida durante a ditadura militar não se limitava a presos políticos, mas era estendida a toda população carcerária, mesmo os encarcerados por crimes contra a propriedade, como furtos e roubos.
Hoje, século XXI, em que se opta por priorizar o combate a esse tipo de crime, que corresponde a 75% das condutas penalizadas, a tortura ainda é praticada. Nos presídios e delegacias, é utilizada como meio de disciplina e castigo. Segundo a Pastoral Carcerária da Igreja Católica de São Paulo, em 1998 foram registrados cerca de 500 casos de tortura no sistema penitenciário do Estado. Em 2005, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados lançou Relatório Sobre a Tortura no Brasil e identificou 1.863 casos de tortura e tratamento desumano, cruel ou degradante no período de outubro de 2001 a janeiro de 2004.
Claramente, trata-se de um problema não resolvido. Ainda são muito aceitos na sociedade brasileira discursos legitimadores da violência, ou um sentimento de que os torturados “mereceram” seus suplícios. Em uma discussão ocorrida no dia 9/12 na Câmara dos Deputados, após a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) defender o documento produzido pela Comissão da Verdade, o deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) deu a seguinte declaração: “Fique aí, Maria do Rosário. Há poucos dias você me chamou de estuprador no Salão Verde e eu falei que eu não estuprava você porque você não merece. Fique aqui para ouvir! Por que não falou da sua chefe, Dilma Rousseff, cujo primeiro marido sequestrou um avião e foi pra Cuba, participou da execução do major alemão? O segundo marido confessou publicamente que expropriava bancos, roubava bancos, pegava armas em quarteis e assaltava caminhões de carga na Baixada Fluminense. Por que não fala isso?
Tal discurso por um parlamentar é inconcebível numa sociedade verdadeiramente democrática. É impensável o estupro ser defendido de modo tão naturalizado e vil. Mas, infelizmente, faz sentido. Bolsonaro é grande defensor do regime militar, até hoje. E o estupro era uma das práticas de tortura mais utilizadas contra as mulheres durante a ditadura. 3399 mulheres apresentaram seus casos à Comissão da Verdade, sendo que quase todas foram vítimas de violência sexual e 316 reconheceram terem sido estupradas.
O tema da tortura não é atual apenas na sociedade brasileira. O relatório sobre os métodos de interrogação da CIA apresentado nos EUA trata das 119 pessoas presas após a edição do “Patriot Act”, a lei da administração de George W. Bush que transformou o país num Estado de exceção, legalizando a prática de tortura contra terroristas. Naomi Klein, que cobriu pessoalmente como repórter a Guerra do Iraque, já afirmava o uso do manual Kubark no contexto do antiterrorismo. Também o vazamento de fotos que mostravam práticas bizarras de tortura de prisioneiros em Abu Ghraib, em 2003, evidenciou essa prática. Documentos vazados por Snowden e pela Wikileaks já traziam dados sobre isso. Agora, o recém-lançado relatório mostra mais detalhes e mais informações acerca desse fato.
Patty Culhane, correspondente da Al Jazeera, afirma, em reportagem do dia 10/12, que o documento evidencia algumas das práticas: detentos podiam ser proibidos de dormir por até 180 horas (mais de uma semana), resultando em alucinações; um preso morreu de hipotermia depois de ser acorrentado seminu no chão; detentos podiam ser puxados de suas celas, suas roupas cortadas, um capuz colocado em suas cabeças, e arrastados a um corredor enquanto eram repetidamente espancados; a CIA decreveu afogamento com água (“waterboarding”) como uma “série de afogamentos seguidos” (“series of near drownings”) e assim por diante.
Essas práticas ocorreram em guerras e ocupações, mas tomam lugar principalmente em Guantanamo, base militar que os EUA têm em Cuba, utilizada como espécie de campo de concentração antiterrorista. O presidente Barack Obama prometeu em campanha fechar a instalação, notadamente violadora de direitos humanos. Ante sua inércia em tomar medidas efetivas, a Anistia Internacional apoiou campanha para incentivar seu fechamento, a qual contou com um video da grande musicista do jazz atual Esperanza Spalding.


Neste vídeo, são apresentados dados não muito divulgados sobre a instalação: “por mais de uma década, os EUA fez prisioneiros em Guantanamo sem acusação ou julgamento”, “779 homens continuam detidos desde 2002, 164 continuam, mesmo que mais da metade esteja liberado para sair”. Como lembrado no clipe, Obama declarou que “Guantanamo se tornou um símbolo mundo afora de que a America zomba do Estado de Direito”.
Assim como no Brasil, práticas que remontam a escravidão, cicatriz indelével e ainda não resolvida em ambos os países, vem à tona por meio da violência. Seja a violência da tortura cometida contra prisioneiros, seja a violência racista, que explode os EUA em protestos contra o homicídio de negros desarmados por policiais brancos. Nos dois países, repensar a política de memória, acertar as contas com o passado, passa necessariamente por acertar as contas com o presente.



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