O filme Annabelle: o machismo e o medo de falhar enquanto mãe

Este ano foi lançado o longa de terror Annabelle, do diretor John R. Leonetti. O enredo se passa nos anos 1960 e trata de jovens recém-casados, o médico, John Form, e a dona de casa, grávida do primeiro filho, Mia Form. 
Logo no começo do filme, os futuros pais têm uma conversa desagradável, na qual John se diz preocupado com a situação "aterradora" e "desafiadora" do casamento e da paternidade. Após a discussão, sentido-se culpado, John presenteia Mia com uma boneca especial, que completava sua coleção de bonecas de porcelana.

Na mesma noite, eles são atacados violentamente por Annabelle Higgins e o namorado, envolvidos em seitas ocultistas. Mia quase perde seu bebê, mas a polícia chega a tempo de salva-los e matar o homem no instante em que iria matar John. Annabelle se suicida logo antes da polícia chegar, segurando em seus braços, como um bebê, justamente a boneca que Mia havia ganhado aquele dia. A cena mostra o sangue da mulher caindo nos olhos da boneca, sugerindo que esta foi possuída pela suicida.
Após esse evento, manifestações "demoníacas" começam a acontecer.
Mia precisa ficar deitada para não oferecer riscos a seu bebê. Ao mesmo tempo, para conseguir um emprego em outra cidade, o que traria novos ares, John precisa viajar por dois dias. Antes de partir, Mia obriga John a jurar que se tivesse de escolher entre a vida de Mia e o bebê, deveria escolher salvar o bebê. Durante sua viagem, em uma armadilha do "demônio", a casa pega fogo e, novamente, Mia é salva no instante preciso.
John volta correndo para descobrir que sua filha, Lea, nasceu.
Logo após, o casal se muda, mas descobre que a boneca-Annabelle vem junto com a mudança. John está o tempo todo fora de casa, trabalhando, e Mia fica cuidando de Lea em casa, costurando e descansando. As manifestações sempre ocorrem nessa situação.
Desde o começo do filme, fica claro que o tema em debate é a maternidade, ou, mais especificamente, o papel da mulher enquanto mãe. O maior medo de Mia é falhar enquanto mãe e, por isso, enquanto mulher. Não é a toa que o filme se passa na década de 1960 e que o conflito gerador dos traumas seja justamente causado por um casal Hippie. A tensão entre o casal conservador católico e o casal hippie ocultista subjaz o tempo todo. O medo de uma relação livre (observada pelos conservadores como demoníaca e violenta). O medo de falhar no casamento. A culpa católica de ter dúvidas quanto à John e à maternidade. O medo constante da filha morrer. O medo do adultério. Todas essas inquietações permanecem e o demônio persegue Mia sempre que ela demonstra algum sinal de fraqueza ou de tentação com relação a esses questionamentos.
Mia fica amiga de uma mulher que acredita em sua história, chamada Evelyn, a qual simboliza seu maior temor - a mãe que falhou. A filha de Evelyn morrera precocemente em um acidente de carro causado por ela, que chegou a tentar o suicídio, acometida pela culpa.
[spoiler alertEstudando sobre as seitas ocultistas, Mia descobre que a intenção do demônio era conseguir a alma de sua filha, que deveria ser oferecida. Apresenta como escapatória a Mia oferecer sua própria alma. Impedida de cometer suicídio por John, no instante preciso, Evelyn toma seu lugar e se sacrifica para que Mia possa viver e cuidar de Lea.
Esse filme é interessante de ser comentado pela repercussão nas salas de cinema, especialmente no Brasil, sendo o maior sucesso cinematográfico do gênero na história do país. Chama a atenção que o filme causou reações violentas e incontroláveis de adolescentes, sendo proibido em três cidades da França.
O sucesso é somente explicável pela decadência ideológica, estética e intelectual produzida pelo cinema de Hollywood, uma vez que o filme é de baixa qualidade. Enredo, roteiro e diálogos fracos e esteriotipados. Atores ruins. Fotografia indiferente. O "demônio" parece uma personagem dos x-men [lembra do Noturno?] e as vezes em que a boneca se manifesta ficam num limiar quase cômico.
Pois bem, se suas características enquanto filme de terror não explicam seu sucesso, apenas a história subjacente pode dar tal sentido.
A "moral da história" é extremamente conservadora, e machista: a mulher não pode ter dúvidas quanto ao casamento e, especialmente, quanto à maternidade. O homem sai trabalhar, a mulher fica em casa cuidando dos filhos. A mulher não pode falhar enquanto mãe. Mais. A mulher não pode ter dúvidas quanto a esse papel, disposta a se sacrificar pelos filhos.
Não é a toa que todos os problemas começam com as dúvidas de John e a boneca simboliza justamente essas dúvidas. Também simboliza Annabelle Higgins no sentido de que Annabelle é a filha que se libertou dos pais (no caso, muito sintomaticamente, assassinou os próprios pais) e que se libertou do casamento e da maternidade - é uma Hippie. Também é direta a simbologia da personificação do mal em uma boneca, brinquedo que simboliza a maternidade e a doutrinação da mulher para esse papel.
As tentações de se libertar, de um lado, e o medo de falhar, de outro, consistem no diabo. O tinhoso quer acabar com a maternidade e a sacralidade do casamento. No final, ele só vai embora porque Evelyn, a mãe que falhou, se sacrifica. A mulher que falha enquanto mãe deve morrer para que a seja preservada a maternidade, a sagrada família de John, Mia e Lea. A última aparição do diabo ocorre como se fosse o padre amigo da família repreendendo Mia "Deus tenha piedade da sua alma".
Por fim, a cena final do filme mostra a boneca presa em uma redoma [a boneca real que inspirou o filme] com a frase "evil is real, and while we can contain it, we can never get rid of it."/"o mal é real e embora possamos contê-lo, não podemos nunca nos livrar dele". A tentação do "mal", da libertação da maternidade e do papel social de mulher sempre existirá, mas deverá, pela visão conservadora, ser sempre contida.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CORREDOR CULTURAL DE CURITIBA: o que é?

De Volta para o Futuro: fansástico não, fantasia... sim.

A Crise Europeia e o Capitalismo de Desastre