A Ilha do Medo: o poder de um spoiler e leia o filme de modo literal

Apenas recentemente assisti ao thriller Ilha do Medo (Shutter Island), de 2010, do diretor Matin Scorcese, estrelando Leonardo Di Caprio. O filme é muito bem dirigido e produzido, com fotografia e trilha sonora incríveis, além de um roteiro muito bom.
À primeira vista, a narrativa parece simples: investigador busca paciente de clínica psiquiátrica que desapareceu. Vai encontrando pistas de uma conspiração macabra. Na verdade, descobre que ele era o paciente e que toda essa investigação era uma encenação que buscava trazer-lhe a cura. Essa virada na narrativa seria o grande trunfo do filme.
Porém, podemos ir além na interpretação. O motivo pelo qual demorei tanto para ver esse filme foi que alguém me deu um spoiler dessa virada fundamental da narrativa. Quando assisti, já sabia como o filme iria terminar. 
Aqui cabe uma reflexão, pois, ao invés desse conhecimento prejudicar, ajudou na minha interpretação. Não podemos cair na ilusão de que a supresa do filme é o fundamental e que estragar essa surpresa faz perder a graça da sessão.
Pelo contrário, por saber disso, pude me atentar a alguns detalhes interessantes.
A fantasia que o investigador cria acerca de uma conspiração diz respeito ao seguinte: com o fim da Segunda Guerra Mundial, médicos nazistas vieram para os EUA e levaram adiante seus experimentos de lobotomia, com apoio do governo americano. No caso do filme, a lobotomia era realizada num misterioso farol que ficava na ilha.
Quando o invetigador chega no farol para revelar sua teoria, descobre a "verdade" sobre seu tratamento. Mas devemos nos perguntar o que é a verdade.
Em primeiro lugar, experimentos promovidos pelo governo americano na década de 50 em pacientes psiquiátricos, sem o concentimento destes, de fato ocorreu. Muito bem documentada por Naomi Klein a atividade do Dr. Ewan Cameron (veja https://www.youtube.com/watch?v=7iW1SHPgUAQ).
Essas experiências consistiam em choques elétricos e privações de sentido, num modo muito desumano. A CIA, nos anos 2000, foi condenada a pagar indenização à ex-"pacientes", de modo que essas atividades são reconhecidas até pela justiça americana (veja http://pt.wikipedia.org/wiki/Projeto_MKULTRA)
Às vezes é bom ler o filme de modo literal. O que está na frente dos nossos olhos da maneira mais direta é o que muitas vezes temos dificuldade em perceber. Caprio diz o filme inteiro que existem lobotomias sendo realizadas no Farol e que isso tem o apoio do governo. No fim do filme descobrimos que é ele quem tem a verdade. O filme acaba com Caprio sendo levado ao farol para realizarem nele o procedimento da lobotomia.
O que essa virada na interpretação significa?
Vamos ver duas citações que a dr. Solano (personagem fruto da paranoia do invetigador) fala:


“If you are deemed insane, then all actions that would oherwise prove you are not do, in actuality, fall into the framework of an insane person’s actions. Your sound protests constitute denial. Your valid fears are deemed paranoia. Your survival instincts are labeled defense mechanisms. It’s a no-win situation. It’s a death penalty really.” - "Se você for considerado louco, todas as ações que provariam que você não está louco, na verdade, caem na moldura das características de uma pessoa insana. Seus protestos constituem negação. Seus medos válidos se tornam paranoia. Seu instinto de sobrevivência é rolutado como mecanismo de defesa. É uma situação sem escapatória. É, na verdade, uma pena de morte."

Ou seja, a loucura é um rótulo social com verniz de cientificidade. Nos experimentos de Cameron, pessoas caracterizadas com depressão pós-parto foram submetidas à bárbaros tratamentos de eletrochoque e privação de sentidos - tudo parte de uma experiência macabra.

"Fifty years from now, people will look back and say, "Here, at this place, is where it all began. The Nazis used the Jews, Soviets used prisoners in their own Gulags. And we - we tested patients on Shutter Island."." "Cinquenta anos de agora, as pessoas vão olhar pra trás e dizer 'aqui, nesse lugar, é onde tudo começou. Os nazistas usaram os judeus, os soviéticos usaram prisioneiros de seus próprios Gulags. E nós- nós testamos os pacientes da Shutter Island".

De fato, olhando cinquenta anos atrás para a psicologia americana nós vemos exatamente isso: testes psiquiátricos bizarros e desumanos, que levaram diretamente à criação do Kubark, o manual de tortura da CIA, usado nas ditaduras militares da América Latina (inclusive na brasileira) e, atualmente, em Guantanamo.
Nesse sentido, é genial como o filme termina. Quem denuncia esse esquema absurdo acaba ou isolado na caverna, como a Dra. Solano, ou, incapaz de engolir a mentira, é lobotomizado no farol.


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