Breves Considerações Críticas de Os Juristas como Couteiros: a ordem na Europa Ocidental dos Inícios da Idade Moderna – António Manuel Hespanha
Porém, ao contrário, a atitude de couteiro parece ser justamente a atitude verdadeiramente “moderna”, a atitude ideológica fundamental do modo de acumulação flexível do capitalismo vigente. Segundo Slavoj Žižek, a lógica de consumo atual é a do café sem cafeína, da cerveja sem álcool, do creme fresco sem gordura, ou seja, da substância privada de sua própria essência substancial. Existe um medo de consumir verdadeiramente. A lógica hedonista atual é que tudo é permitido, desde que se possa desfrutar de tudo, desde que as coisas sejam desprovidas de sua substância, do que as torna perigosas.
Segundo Žižek, o conceito marxista de ideologia “disso eles não sabem, mas o fazem” assume atualmente outro caráter, pois, ao se perguntar onde está a ideologia, vê-se que ela está no fazer e não no saber da realidade – não é uma falha na consciência, na compreensão do sensível. O saber ideológico é inconsciente e nos interpela, é o que dizemos, ou melhor, o que fazemos sem qualquer intencionalidade, que veiculamos, porém ignoramos. São os unknown knowns, aquilo que não sabemos que sabemos1.
Isso está relacionado com a ideologia liberal atual: “Hoje em dia, não 'acreditamos para valer', apenas seguimos (alguns) rituais e costumes religiosos por respeito ao 'estilo de vida' da comunidade a que pertencemos”2, caímos numa lógica cínica em que sabemos, mas agimos como se não soubéssemos.
Ora, se agimos dessa forma, em que nossa “cultura” é o estilo de vida de nossa comunidade que praticamos sem acreditar realmente, sem levar essas crenças à sério, repudiamos os crentes fundamentalistas justamente porque eles ousam “levar a sério” suas crenças. “No frigir dos ovos, o fato é que atualmente vemos como uma ameaça à cultura todos os que a vivenciam de forma imediata, todos os que não guardam certo distanciamento em relação a ela”3. Nessa lógica, o outro do multiculturalismo liberal é um outro que não representa problema, desde que sua presença não seja intrusiva, conquanto que o outro não seja de fato um outro. Isso também reflete uma lógica da acumulação capitalista: não tem problema a exploração, se for compensada com filantropia e caridade.
O texto, a partir de Bauman, define o couteiro como os que “não alimentam a vegetação e os animais que habitam o território entregue aos seus cuidados (...). Em vez disso, procuram garantir que as plantas e animais se auto-reproduzam sem serem perturbados (…) Aquilo que os couteiros pretendem é algo bem mais simples: garantir um quinhão da riqueza de bens que estes hábitos intemporais produzem, garantir a recolha desse quinhão e impedir que couteiros impostores (os caçadores furtivos, como são apelidados os couteiros ilegais) os privem da fatia que lhes cabe.”
Ora, o couteiro é o que age sem agir, o que, cinicamente, interfere na realidade para não interferir. Trata-se do jardim sem jardinagem. O jurista que meramente “traduz” uma “cacofonia das prescrições éticas” é justamente o ideólogo que age sem agir. O reconhecimento dos juristas de serem arbitrários e do jurídico de ser político é justamente a razão cínica pela qual se defende um direito sem direito, um direito sem substância, para neutralizar sua parte nociva (um café sem cafeína).
Trata-se justamente da metáfora freudiana do “sonho do filho queimando”, em que se acorda do sonho para uma realidade falsa, acorda-se para continuar sonhando, pois no sonho se depara com o Real de seu desejo: ao se criticar o direito por ser um projeto universalista racionalista e autoritário, “acorda-se” para a realidade de que esse direito nega a autonomia do direito dos povos colonizados, sendo que o correto é um direito pluralista que não imponha formatos, mas comunique os diferentes corpos normativos. Ao fazer isso, “acorda-se para continuar dormindo”, pois a crítica radical não é a crítica do fetichismo da forma, do que está escondido atrás dela, mas justamente a que busca entender a verdade da própria forma, o motivo porque o direito priva o direito dos povos colonizados dessa forma específica. Também “acorda-se para continuar dormindo” porque a proposta pluralista de integração multicultural é totalmente adaptável à acumulação flexível de capital no neoliberalismo, em nada rompe com seus pressupostos. A integração (tradução) de ordens jurídicas diferentes, respeitadas suas autonomias, é saudável para o comércio mundial e o grande cassino do mercado financeiro, que demanda velocidade e tradução cultural simultânea que facilite a transferência dinâmica de capital. Essa integração sem integração, esse outro que não é verdadeiramente um outro, como Žižek critica, é na verdade uma crética à dominação colonial auxiliada pelo direito para propor um outro tipo de dominação colonial auxiliada pelo direito, dominação exercida pela globalização neoliberal e sua integração do capital, via reestruturação produtiva.
Nesse sentido, é inclusive possível trocar as palavras que remetem à fauna e flora no conceito de couteiro pela palavra capital e teremos o sentido ideológico fundamental dessa proposição: os que “não alimentam o capital entregue aos seus cuidados (...). Em vez disso, procuram garantir que os fluxos de capital se auto-reproduzam sem serem perturbados (…) Aquilo que os couteiros pretendem é algo bem mais simples: garantir um quinhão da riqueza de bens que estes hábitos intemporais produzem, garantir a recolha desse quinhão e impedir que couteiros impostores (os caçadores furtivos, como são apelidados os couteiros ilegais) os privem da fatia que lhes cabe.”.
1ZIZEK, Slavoj. “Como Marx inventou o sintoma”. In: Zizek, Slavoj (org.) Um mapa da ideolo- gia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto, 1996.
2http://slavoj-zizek.blogspot.com.br/2010/07/paixao-na-era-da-crenca-descafeinada.html acessado em 09/04/2012
3http://slavoj-zizek.blogspot.com.br/2010/07/paixao-na-era-da-crenca-descafeinada.html acessado em 09/04/2012
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