O QUE É IDEOLOGIA E FETICHISMO NO DIREITO ou SABER OU FAZER? EIS A QUESTÃO
O conceito de ideologia é polêmica que perpassa por todo ferramental teórico de qualquer análise social, especialmente do materialismo histórico. Indo, portanto, direto à fonte, a máxima de Karl Marx destacada do Capital para definir sinteticamente ideologia é a tradicional "disso eles não sabem, mas o fazem"1. O filósofo Slavoj Zizek, dando um passo além do monotom acadêmico sobre o tema, faz uma pergunta central para compreendê-lo: "onde se situa a ilusão ideológica, no 'saber' ou no 'fazer' da própria realidade?"2.
A resposta que parece óbvia não é necessariamente a correta. O senso comum é que a ideologia está no "saber", as pessoas não sabem o que é a verdade, suas consciências estão ideologicamente distorcidas. Porém, resgatando o francês Alfred Sohn-Rethel, Zizek chama a atenção para a existência de abstrações reais, em contraposição à abstrações apenas ideais. Um exemplo que pode nos ajudar a elucidar como a ideologia está no “fazer” e não no “saber” é um sobre sexualidade: embora eu saiba que a noção de beleza é completamente artificial, construída pelas relações sociais, que eu tenha plena consciência de que uma mulher de determinadas medidas seja considerada bonita porque assim a beleza foi nela e através dela constituída; quando vejo essa mulher-modelo não deixo de achá-la bela, e mais, de procurar como parceira uma mulher o mais próxima possível desse tipo ideal de beleza.
Sabemos, mas agimos como se não soubéssemos – a ideologia, a abstração, está no “fazer”, no ato, e não na consciência, pois, usando o exemplo de Zizek, no pensamento as pessoas sabem que há relações sociais por trás de uma compra, mas ainda assim, agem como se o dinheiro fosse a encarnação imediata da riqueza. Durante esses momentos adotamos uma postura taoísta por assim dizer, Lao Tsé dizia “o bom é não saber que se sabe”. Durante esses atos, não sabemos que sabemos, em inglês, são os “unknown knowns”.
Esse debate remete a uma confusão que muito comumente é feita entre ideologia e fetichismo – que para Marx consistia na valoração de algo de forma subjetiva e desatrelada da realidade, uma valoração como fetiche, condição oriunda da não consciência das relações sociais por trás da produção das mercadorias – como não entendemos como a mercadoria é feita, não sabemos seu valor, na falta desse saber, “criamos” um valor fetichizado. O fetichismo, portanto, consiste na ocultação das relações sociais necessárias em determinadas ocorrências.
Essa categoria marxista tem outro significado, similar, mas diverso. Tomemos outro exemplo para compreendê-la: Se seguro em mãos um óculos e pergunto-lhe “você sabe o que é este objeto? Você o conhece?”, certamente que você me responderá que sim, é um óculos. Se eu indagasse, então, de que material ele é feito, quantos graus ele tem, qual o nome do pigmento de sua armação, muito dificilmente você me daria a resposta precisa. Esticando ainda mais a corda, se eu lhe perguntasse sobre quantas pessoas trabalharam no processo produtivo do objeto, e mais, o quanto de trabalho que lhe é incorporado, o quanto ele vale, seria impossível você me dar uma resposta exata. Desta forma, como você me diz que conhece o objeto? Não sabemos nenhuma dessas características, portanto, não sabemos o que é o óculos. Não sabemos, mas agimos como se soubéssemos. A ilusão aqui está no “saber”, não sabemos que não sabemos, são os “unknown unknowns”.
A ideologia jurídica, desta forma, consiste no fato de termos consciência que o direito produz injustiças, que a igualdade formal apenas legitima uma desigualdade material, que o direito penal serve para criminalizar a pobreza, que o direito do trabalho proíbe política na esfera da produção, e assim por diante; mas apesar de termos consciência desses sintomas, agimos como se eles não existissem. Somos todos marxistas na crítica e fukuyamistas na prática – pós-modernos por excelência, levamos como dogma a frase de Winston Churchill de que "a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos"3, ou seja, a cínica política do “menos pior”.
Por outro lado, também sofremos com um fetichismo jurídico. Julgamos saber o que é o direito, tanto em seu caráter funcional, que seria a função de pacificação social, quanto em seu caráter estrutural, que seria a lei ou, num entendimento mais avançado, os conceitos; mas, se questionarmos que relações sociais necessárias criaram e estabilizaram a forma específica pela qual o direito se manifesta, não sabemos dizer o que ele significa. Como a forma fetichizada oculta a realidade do conceito, caímos em definições fantásticas de caráter subjetivo, como a função pacificadora, ou o conceito absoluto.
Enquanto a ideologia jurídica produz esquizofrenias intelectuais, em que conclusões não decorrem dos fundamentos, o fetichismo jurídico provoca uma crença paranóica em conceitos subjetivistas e fantasmagóricos. Aqueles que se rendem à ideologia dominante no Direito, não acreditam na modernidade, mas propõem o paraíso do reconhecimento da alteridade dentro de uma ordem legal (como se o direito não fosse, usando o termo inventado por eles, “moderno”). Os que se rendem ao fetichismo, por sua vez, crêem fervorosamente nos ideias sete e oitocentistas de igualdade, liberdade e propriedade burguesas.
Os seduzidos pela ideologia, ao não saberem que sabem, têm consciência da problemática social da existência da propriedade, da injustiça produzida pela igualdade formal, mas agem como se não soubessem, e propõem como solução ao problema propriedade a própria propriedade (agora travestida com uma “função social”), e como solução ao problema da igualdade formal, a própria igualdade formal (na verdade, a igualdade material reconhecida pelo ordenamento, nada mais que a igualdade material formalizada). Os fetichizados, ao não saberem que não sabem, julgam que o direito é muito bom da maneira que é, que ele alcança todos seus ideais de justiça e fraternidade, e quando deparados com a dura realidade batendo de frente em suas cabeças duras, recorrem ou a filósofos burgueses do iluminismo, como Rousseau, ou a conceitos elevados ao patamar de valores, tendo a democracia como valor universal e absoluto no sentido Kantiano; ainda há alguns, mais vulgares, que se voltam para conceitos aparentemente sociais feitos por juristas obtusos, são estes os que levantam a função pacificadora do direito.
A ideologia do Direito não é a divisão jusnaturalismo/positivismo nem a divisão pós-moderna de paradigmas, mas a divisão entre ideologizados, fetchizados e abolicionistas. A única resposta que se propõe liberta de ilusões, sejam elas advindas do “saber” ou do “fazer”, é a que reconhece o movimento dialético das idéias e da matéria e que faz uma análise sistêmica partindo da realidade social humana, das necessidades humanas frente ao embate homem/mulher-natureza, e que entende a complexidade das coisas mas sem desatrelá-las de um entendimento imerso na totalidade das relações.
Espero ter deixado reflexões importantes àqueles seduzidos pelo canto ideológico da sereia pós-moderna, que canta a canção da confortável “fanática indecisão”4. Àqueles caídos na teia do fetichismo, nada que falarei ajurá, pois a consciência destes só se elevará na práxis, e dificilmente eles cairão numa práxis que não seja monótona. Quanto aos abolicionistas, aguardo sugestões e críticas para nos aprimorarmos neste movimento dialético academicista.
1ẐIẐEK, Slavoj, Como Marx Inventou o Sintoma? Se referindo a MARX, Karl. Capital, v. I, Londres, 1974, p. 80
2ẐIẐEK, Slavoj, Como Marx Inventou o Sintoma?, p. 314
3http://pt.wikiquote.org/wiki/Democracia acessado em 31/03/2010 às 23:18
4O termo “fanática indecisão” foi retirado da música Canibal Vegetariano Devora Planta Carnívora, dos Engenheiros do Hawaii
Olá meu caro, achei legal o seu texto.
ResponderExcluirTambém sou estudante de direito e estou fazendo minha monografia tomando como partida o Texto do Sohn-Rethel e a paralaxe do Zizek.
Qualquer coisa esse é meu blog: http://retroversao.blogspot.com/
Muito muito muito bom
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