LISBOA DE OUTRORA DE HOJE, PLANETA PROLETÁRIO, O QUE ME DAIS?
a formatação desse infeliz html do blogger tirou dos poemas do Maiakovski a forma, mas ainda dá pra entender.
Vida e contexto: entre e intra guerras.
Em 1890 "nascia" ficticiosamente o poeta Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, este nascido em 1888. Diferente do criador tanto na maneira de escrever quanto na postura que tinha em relação ao mundo e à humanidade. São pessoas, poetas diferentes - eis a genialidade de Pessoa.
Muito sensível ao lugar e à época em que vivia, Álvaro de Campos sentia as dores do começo do século XX, quando o projeto de um novo mundo começava a mostrar suas inconciliáveis contradições e a humanidade, segmentada, era jogada num abismo dentro dela própria. Em 1914, com 26 anos, o poeta português sofreu as angústias terríveis da Grande Guerra, a maior destruição humana, a desolação não apenas de exércitos, mas de civis, de nações inteiras, de um continente.
Grandes são os desertos, e tudo é deserto
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos a alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes –
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
(Grandes são os desertos - Álvaro de Campos)
Cinco anos após o nascimento do poeta português, em 1893, no outro lado do mundo, nasceu outro poeta: Vladimir Maiakovkski. Esse teve com a barbárie mais cedo que o lusitano. Em 1905, com apenas 15 anos, participava na revolução contra o Czar ativamente, pois nessa idade, ingressara no Partido Bolchevique. Passou tempo na prisão. Em 1917, participou e lutou na revolução socialista dos soviéticos.
Se o deserto era tudo em Portugal, na Rússia, ele também era gelado. A geração de Maiakovski passou pela guerra contra o Czar, pela guerra contra o Japão, pela revolução socialista, por vários anos de guerra civil – e depois da morte do poeta, ainda lutaram na terrível Segunda Grande Guerra, nas guerras do Afeganistão, Coreia, Vietnã, etc.
Chegou a minha vez
de partir para oeste!
Marcharei e marcharei tanto
até que teus olhos me chorem
lendo o anúncio: “As Baixas”
impresso em letras miúdas
(Dedicatória – Vladimir Maiakovski)
Ambos tinham em comum o enorme talento para tecer versos. Os dois tinham influência da poesia futurista, dos versos brancos, sem métrica. Muito especiais no conteúdo e na forma. Embora contemporâneos, nunca se conheceram, Maiakovski não falava além do russo outro idioma, nunca sequer lera o companheiro de versos. Mesmo assim, os poetas, sensíveis, não deixam de estar imersos na realidade maçadora e enfadonha da Europa do entre-guerras, que deixa seus efeitos nas subjetividades atingidas.
A sacanagem
hoje em dia
ainda não ficou rara.
(A Serguéi Iessiênin – Vladimir Maiakovski)
Perante isso tudo como tudo o que os homens fazem,
Tudo o que os homens dizem,
Tudo quanto construem, desfazem ou se construi ou desfaz através deles,
Se empequena!
(Ah, perante esta única realidade – Álvaro de Campos)
A postura decorrente: o posto, a preposição e a propositura
Mesmo embebidos nesse espírito depressivo de uma Europa moralmente destruída, um não podia ser mais estranho ao outro. O Campos criado por Pessoa vivia na Europa continental, era monárquico, razão pela qual se mudou ao Brasil, um pessimista quanto ao destino na humanidade: niilista, sorvia toda angústia como se fosse sua angústia individual. Acreditava que a miséria da condição humana nascia de sua própria natureza e que, portanto, o indivíduo não tinha saída. Via a desgraça da civilização, mas quanto a ela adotava uma postura passiva e de desespero – constantemente se lamentava, com cansaço e preguiça de tudo, adotava sempre soluções individuais e covardes, seja o ópio, o suicídio ou a simples espera pela morte.
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
(Se te queres matar - Álvaro de Campos)
A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas –
Essas e o que falta nelas eternamente –;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.
(O que há em mim é sobretudo cansaço – Álvaro de Campos)
Por isso tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.
(Opiário – Álvaro de Campos)
Grandes são o desertos, e tudo é deserto,
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida.
(Grandes são os desertos - Álvaro de Campos)
Maiakovski, por sua vez, não sentia as angústias da sociedade como sendo suas individuais, pelo contrário, suas dores individuais eram as da humanidade. No contexto duro em que vivia, sua atitude era a ação. Do lado do proletariado, da classe do povo trabalhador, encarava sua atividade de poeta como fabricação de mesma ordem que qualquer trabalho importante na construção do socialismo. A miséria humana não surgia dela mesma, mas de uma condição histórica, social, a qual Maiakovski lutava não apenas através de versos. A saída, para ele, era coletiva, era tomando as rédias do mundo, entendia o caráter universal e grandioso dessa postura – muito utilizava a hipérbole como figura de linguagem, fôra sempre corajoso e ativo, guerreiro, não desistiu da humanidade.
Quem não aguentou
a tarefa doméstica
e dorme
no bem-bom
das rosas de papel,
esse
não atingiu o talhe
da poderosa vida
do porvir.
(Desatai o futuro – Vladimir Maiakovski)
Em frente, marche! Basta de falar!
O tempo dos oradores já passou.
Hoje tem a palavra
o Camarada Mauser!
(…)
Fustiguemos a carroça da história.
(À Esquerda – Vladimir Maiakovski)
Eu sinto que sou
uma usina soviética
de fabricar felicidade
(O Regresso – Vladimir Maiakovski)
O futuro: se te queres matar...
Muito curioso que os poetas contemporâneos tenham feito muito sucesso com poemas sobre o suicídio. Álvaro de Campos com o seu Se te queres matar e Maiakovski com A Serguéi Iessiênin. É incrível, entretanto, a divergência que apresentam ante o assunto. O lusitano, via como solução da enfadonha vida ridícula e miserável de seu (e nosso) tempo, a morte. A existência era patética e o ser humano, vil. Para acabar com a vileza, com o ridículo, apenas a morte.
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta! Não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para os outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
(…)
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te,...
Não tenha escrúpulos morais, ou receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
(Se te queres matar - Álvaro de Campos)
Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada,
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
(Lisbon Revisited 1923 - Álvaro de Campos)
Maiakovski, entretanto, critica duramente essa postura derrotista. Muito embora, o próprio poeta tenha cometido suicídio em 1930, em sua obra poética ressalta a ambição do mundo do porvir, e da justiça à classe trabalhadora. Em seu poema de despedida, À Plena Voz, dedica todos os seus versos ao planeta proletário. Lamenta-se de como não se valorizam mais seus poemas como instrumentos da construção do socialismo, mas apenas como mérito e propaganda do regime – a política estalinista da construção de estátuas e monumentos.
Pouco me importa
o bronze dos monumentos!
Rio-me
do fulgor frio dos mármores!
Partilhar a glória?
Aqui
entre nós:
tenhamos por único
monumento coletivo,
edificado
por todos,
o socialismo.
(À Plena Voz – Vladimir Maiakovski)
Seu suicídio não se deu por desistir do mundo, dos proletários, do socialismo. As contradições da Revolução de Outubro – sob o regime de Stálin, sob as condições atrasadas da Rússia, sob a derrota da Revolução Alemã de 1920, sob a mesquinharia pequeno-burguesa ainda ressoante na vida cotidiana – tornaram-se insuportáveis ao sensível poeta.
Sugere ele, então, referindo-se a Iessiênin, em posição oposta ao do português:
Por que
aumentar
o número dos suicídios?
Melhor seria
aumentar
a produção de tinta!
(…)
A sacanagem
hoje em dia
ainda não ficou rara.
A tarefa é grande
mal bastamos.
É preciso primeiro
refazer a vida,
uma vez refeita
poderemos cantá-la.
O nosso tempo, para a pena,
não é muito fácil.
Mas digam-me
os aleijados, os impotentes,
Onde
e quando
aqueles que são grandes
escolheram
os caminhos traçados
e fáceis?
(A Serguéi Iessiênin – Vladimir Maiakovski)
Como se um respondesse o outro, dialogam, ou melhor, debatem:
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira
(Se te queres matar - Álvaro de Campos)
Melhor
morrer de vodka
do que de tédio!
Nem a forca
nem a faca
nos darão a chave
dessa perda.
(A Serguéi Iessiênin – Vladimir Maiakovski)
A postura de Maiakovski é revelada de maneira ainda mais direta em seu pequeno livro Como Fazer Versos, quando se refere à finalidade que tinha em mente com o poema à Iessiênin:
Finalidade: paralisar de modo refletido a ação dos últimos versos de Essenine [Iessiênin], tornar a morte de Essenine desinteressante, fazer preceder no lugar da fácil beleza da morte uma outra beleza, porque todas as forças são necessárias à humanidade operária para prosseguir a Revolução, que exige – apesar das dificuldades encontradas no caminho, apesar dos contrastes da N.E.P. – que nós glorifiquemos a vida, a alegria da mais difícil das caminhadas: a que conduz ao comunismo.
Talvez, esses contrastes, que e acentuaram com o passar dos anos, pesaram mais ao poeta que o suportável.
A conclusão, por mais óbvia que possa parecer, é que somente contextos sociais e históricos especiais podem criar poetas de tão grande estirpe, tanto o português quanto o soviético. Da mesma maneira, apenas uma diferença fundamental na práxis social é capaz de diferenciar tanto as posturas opostas que eles têm. Apenas uma revolução socialista pode criar poeta tão incrível como Maiakovski. Apenas uma sociedade burguesa de Lisboa do entre-guerras pode criar poeta tão merencório como Álvaro de Campos, ou melhor, Fernando Pessoa.
Epílogo: o mais difícil
Iessiênin, ao se matar, escreveu com seu próprio sangue, na suíte do Hotel Inglaterra, onde se hospedava, os seguintes derradeiros versos: Nesta vida morrer não é nada de novo, mas viver também não é muito mais novo. Talvez, Álvaro de Campos teria concordado.
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
(Se te queres matar - Álvaro de Campos)
Nessa terra de tristezas, o lusitano cai no abismo de si próprio e geme desesperado, descrente, solitário. O soviético, este morre acreditando, se mata, mas crê, e sente em cada verso o peso histórico da humanidade. Termina seu poema à Iessiênin com estes corajosos versos:
Para a alegria
o nosso planeta
ainda está mal preparado.
É preciso
extorquir
a alegria
aos dias futuros
E conclui, zombando dos últimos versos de Iessiênin:
Nesta vida
morrer não é difícil
Construir a vida
é bem mais difícil.
(A Serguéi Iessiênin – Vladimir Maiakovski)
Referências Bibliográficas:
MAIAKOVSKI, Vladimir. Maiakovski. Vida e Poesia. - 2.ª ed. - São Paulo : Editora Martin Claret, 2006 - tradução de poemas de GUERRA, Emílio C. e FRESNOT, Daniel.
Dedicatória
A Serguéi Iessiênin
Desatai o futuro
À Esquerda
O Regresso
À Plena Voz
MAIAKOVSKI, Vladimir. Poética: como fazer versos. - 5ª ed. - São Paulo : Global, 1991. - tradução de LANDEIRA, Antônio e FERREIRA, Maria Manuela. p. 35.
PESSOA, Fernando. Obras Completas de Fernando Pessoa: poesias de Álvaro de Campos. - Lisboa : Editorial Império Limitada, 1958.
Grandes São os Desertos
Ah, Perante Esta Única Realidade
Se te queres matar
O que há em mim é sobretudo cansaço
Opiário
Lisbon Revisited (1923)
Recomendo fortemente a leitura de todos esses poemas e também do livro do Maiakovski.
que lindo texto.
ResponderExcluirMuito bom!
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