Bastardos Inglórios e Django Livre: duas versões do mesmo filme.

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No filme “Lost Highway” (1997), Estrada Perdida em português, do diretor David Lynch, conta-se a narrativa de um homem (Bill Pullman) que, atormentado por seu fracasso sexual e afetivo para com sua esposa (Patricia Arquette) a assassina violentamente. Depois de preso, o protagonista entra em sua fantasia, mostrando como em sua visão ocorreu o crime brutal. Nessa fantasia, tanto o homem quanto sua esposa alcançam o máximo em desejo e sexualidade. O obstáculo a sua realização plena torna-se externo a ele, uma outra pessoa, Mr. Eddy (Robert Loggia), uma espécie de mafioso que controla a vida da mulher fatal Patricia Arquette. Assim, para acabar com o obstáculo e lutar contra a frustração da impossibilidade de dominar o desejo feminino, o protagonista assassina Mr. Eddy. Na realidade, sua vontade de dominação, que em sua fantasia é barrada por algo externo, volta-se contra a sua própria esposa, a quem mata de verdade.
David Lynch constrói sua narrativa de modo muito interessante. Na primeira metade do filme, Bill Pullman interpreta o protagonista. Mas, após o homicídio, na parte da fantasia, altera-se o intérprete, que se torna Balthazar Getty, mudando também todo o personagem, de Fred para Peter Dayton, de Bill Pullman para Balthazar Getty. Não nos deixemos enganar por este artifício, trata-se da mesma pessoa. Patricia Arquette continua, embora também altere sua personagem.
http://cinematographecinemafilmes.files.wordpress.com/2012/09/david-lynch-lost-highway.jpg
Essa estrutura se repete no outro filme de David Lynch “Mullholand Dr.” (2001), Cidade dos Sonhos. Segundo Slavoj Zizek, os dois são versões diferentes do mesmo filme. Neste, a história amorosa se dá entre duas mulheres e, ao inverso, o filme começa com a fantasia, apenas no final revelando a tragédia verdadeira.
O mesmo ocorre com os últimos dois filmes de Quentin Tarantino, “Inglourious Basterds” (2009), Bastardos Inglórios, e o recém-lançado “Django Unchained” (2012), Django Livre. Trata-se de duas versões do mesmo filme. No primeiro, a trama mostra a fantasia histórica em que judeus americanos caçam nazistas na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, cometendo contra eles violentas atrocidades, como escalpelamentos, mortes à pauladas de tacos de basebol e marcações da suástica na testa de oficiais nazistas sobreviventes. A estória se desenvolve até o diálogo principal do filme, que se dá entre o nazista Landa (Christoph Waltz) e o tenente Aldo Raine (Brad Pitt). Nesse diálogo, Landa propõe deixar que ocorra o atentado que matará Hitler e o alto comando do partido nazista em troca de uma vida boa nos EUA. Após essa conversa, todas as fantasias se realizam, a guerra acaba com uma grande explosão e mesmo Landa é marcado como nazista pelo tenente americano.
 http://images.rottentomatoes.com/images/spotlights/2009/rtuk_feature_inglourious_basterds_02.jpg
A genialidade de Tarantino está em mostrar como a vitória sobre o nazismo foi muito relativa através do recurso do estranhamento. Realizando todas as fantasias históricas ele mostra como essas fantasias não foram realizadas. Na realidade, Hitler e o comando da SS não foram mortos teatralmente, muitos nem morreram. Na realidade, os nazistas sobreviventes passaram a viver uma vida pacata e rica, alguns nos EUA. Na realidade, os nazistas nunca temeram os judeus como estes os temeram. A única parte do filme que denuncia pela via direta essa crítica é o diálogo referido. Neste, Landa negocia o fim da guerra em troca de privilégios, e foi assim mesmo que a guerra acabou, com os oficiais nazistas se rendendo para não sofrerem as consequências dos seus atos e com um julgamento duvidoso em Nuremberg. Assim, Tarantino coloca em xeque a “vitória” sobre o fascismo.
Em Django Livre, a estrutura é a mesma. O escravo Django (Jamie Foxx) realiza a fantasia histórica de se tornar um caçador de recompensas livre, ou seja, um ex-escravo cuja profissão é matar brancos. A história se desenvolve com o protagonista buscando sua esposa, ainda escrava, com a intenção de comprar sua liberdade. Durante essa busca, Jamie Foxx é preso por se envolver na morte do patrão de sua esposa, denunciado por Stephen, um escravo doméstico totalmente submisso a seus mestres, interpretado por Samuel L. Jackson. Entre os dois, ocorre o principal diálogo do filme, que como em Bastardos Inglórios traz a única crítica pela afirmação e não pela negação. Nela Samuel L. Jackson afirma que na busca de Django por liberdade sua punição devia ser pior do que a morte, devia ser o trabalho pesado sem chance de contestação e a morte por fadiga. Após essa conversa, como no outro filme, as fantasias se realizam e Django liberta sua esposa por meio de uma grande explosão, alcançando a liberdade.
http://printthelegend.files.wordpress.com/2013/01/django-unchained.jpg?w=500&h=250
Novamente, pela fantasia orgiástica realizada na tela, o filme mostra como na realidade, essa fantasia não ocorreu. Com o fim da escravidão, veio o começo do trabalho assalariado, mais duro para o negro que para o branco. Assim como no caso do nazismo, a vitória sobre a escravidão foi parcial. A liberdade alcançada é relativa. São temas correlatos, opressões que, de uma forma ou de outra, ainda existem e cuja libertação completa nos filmes de Tarantino se torna engraçada e estranha para nós. A qualidade do diretor está em produzir uma obra que num primeiro nível agrada por realizar todos esses desejos inconscientes e, num segundo plano, destrói o nosso gozo ao nos estranhar essas vitórias que nunca existiram.

Comentários

  1. Pois é, ser realmente livre, feliz e realizar a potência do humano por intermédio do trabalho [+ amor e conhecimento, na dialética de Wilhelm Reich] é algo que somente alcançaremos [é o que se espera, é a nossa utopia ativa...] mediante a suprassunção [aufhebung] da exploração do trabalho humano. Ainda não vi Django, mas verei, depois de ler seus comentários. Em tempo: Estive em Curitiba uma única vez à passeio. Foram apenas 3 dias. O suficiente para visitar o Paiol e me encantar. Tive o imenso prazer de, naquela acústica maravilhosa do teatro vazio de gente mas pleno de espírito, tocar na flauta "Samba em prelúdio" e, depois... cair num choro [literalmente, não musicalmente rs] emocionado.
    Abraços,

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